30 novembro, 2008

Homenagem a Fernando Pessoa

Acho que entendo o Fernando Pessoa.
O Fernando Pessoa que é o Álvaro de Campos
E o Ricardo Reis e o Alberto Caeiro
E o Bernardo Soares e o sei lá quem mais.
Sim, acho que o entendo.
Não penso que o entendo
Nem sinto que o entendo.
Acho.
Achar é um heterónimo da mescla entre o sentir e o pensar.
E foi no território cinzento que eu achei o Pessoa.
E não acho que entendo o Pessoa-poeta
Ou o Pessoa-poetas,
Mais do que qualquer outro crítico ou leitor.
Nem acho que o entendo sob uma perspectiva clínica
- Nunca estudei medicina nem gosto de hospitais.
Acho que entendo o Pessoa-pessoa, o Pessoa-pessoas.
Acho que o entendo porque me acho nele e me acho como ele
E acho-o a ele em mim e acho-nos Portugal
E Portugal em nós.
Assim foi que Portugal se achou, achando o mundo,
Achando novos caminhos e lugares,
Achando novas formas de achar.
Foi assim, pescadores famintos e fracos,
Agricultores ignorantes e incultos,
Sapateiros sujos e imundos,
Soldados um para selvagens mil…
Em cada um de nós, outro se erguia
E outro espreitava e outro nascia,
Pessoa nascida da alteronímia do heterónimo…
Foi assim que sobre uma doença mental
Cunhámos a ferro e fogo e poesia uma identidade nacional
E conquistámos o mundo, só por achá-lo.
E agora o que achamos nós
Quando a nossa psique foi institucionalizada?

27 novembro, 2008

Pelagus (IV)


No vazio do universo
A mente viaja
Na consciência da sua pequenez
E da sua mortalidade.
E o universo por sua vez
_________mente a viagem
Inversa
Como, se partindo do seu ponto de origem,
Se volatilizasse numa única célula cerebral
Do voyeur que o espreita
Telescopica-
________-mente.

23 novembro, 2008

A Bala


A bala sentiu o passar das horas dentro da carabina com a indiferença natural de um pedaço de metal. A espera e o lento desenrolar de uma manhã que pareceria, a alguém que não fosse de metal, nunca mais ter fim, o constante espreitar por detrás do postigo da janela de um sexto andar de uma enorme avenida em Dallas, o simples facto de estar ali, parada, sem cortar o ar, sem estar junto com as suas semelhantes, ali, no frio vazio da carabina, o corpo de metal frio abraçado pelo frio toque do metal da arma, nada a fazia tremer, suar, hesitar. Nada. A sua rota estava traçada, nada havia a rever. Rota, não: destino. O sol do meio-dia caía a pique sobre a janela virada para sul mas nem assim a bala desviava o seu olhar, mesmo que o sol lhe queimasse os olhos. Ela sabia para onde se dirigir, até de olhos fechados. E nada de suor. Nada de remorso. Meio-dia e vinte e nove. O cortejo atravessa, lentamente, a avenida. O carro presidencial a todos acena com a sua capa de tinta preta imaculada, enquanto o azul, branco e vermelho das bandeiras ondula apenas ao sabor da velocidade do veículo , uma vez que Dallas hoje não está na rota do vento – não é de rotas que se trata, é de destino. Um vulto levanta-se e agradece o amor do povo, enquanto sorri. De repente, a frialdade que envolvia a bala transforma-se num inferno quente que a leva pelo comprido cano da carabina de origem italiana, pela janela fora, do sexto andar na direcção da avenida, sobrevoando a cabeça do povo, sobrevoando o asfalto da estrada, sobrevoando o sonho. Meio-dia e meia. Depois de ter cortado o ar empolgante e patriótico que enchia os pulmões da cidade, a bala sentiu um forte impacto. Segundos depois, recobrou a consciência e notou que estava despedaçada sobre o cabedal outrora branco do banco de trás do veículo presidencial. Despedaçada e envolta em sangue. O cabedal também se encontrava cheia de sangue. E tecido cerebral. A última coisa que viu, antes de seguir o seu destino (a morte) foi o olhar embebido de um sorriso terno do homem que tinha acabado de atravessar. O que já não ouviu foram os gritos desesperados da primeira-dama, ritmados pela euforia de milhares de gargantas que gritavam pelo nome do seu marido, ignorantes de que John já não se encontrava entre eles.

20 novembro, 2008

De Branco Pintadas


De branco pintadas as paredes são
Monotonamente.
Mente monótona esta minha mente.

O relógio devora as horas
Que passam quadradas pelo futuro
E branco ladro e mio
E vida e morte invadem
O meu pensamento catarino.

De branco pintadas as paredes estão
Irreflectindo dos meus olhos a cor
Que negros monotonamente o são.

E há uma catedral sem cúpula sobre a sua nave
Pintada na retina do meu olhar
E há um sol de meio-dia que transluz
O som metálico do tempo parado.

E quando o ponteiro grande está no quarto
Mil virgens emergem da minha pele e nela copulam.
E quando o ponteiro grande está nos dois quartos
Eu toco o cheiro da tinta.
E quando o ponteiro grande está nos três quartos
Ouço leite de amêndoas escorrendo pelas paredes.
E quando o ponteiro grande procura o norte eu grito:
Mutunus Tutunus!
Mutunus Tutunus!
Todas as virgens sentem-se sobre o falo erecto do deus!
Falo de pedra.
De que falo eu?

De branco pintadas as paredes são
Monotonamente.
Sente-se monótona esta minha mente.

E um corvo negro de flamejantes asas
Forma-se dos olhos nocturnos que preenchem
As minhas órbitas em chama.
E voa em redor do meu corpo cego
Saltando livremente de osso em osso
Debicando a alma poluta que prostrada
Envelhece a minha cama.
Mas quando a tinta das suas penas seca
O grande pássaro não consegue levantar voo
E pálido morre fitando o perfil vazio da página branca.

Sussurro-lhe:
Lázarus, Lázarus, Lázarus.
Mas o papel não responde
Ainda que me olhe do outro lado de mim.

E o silêncio é corrido como uma persiana
Hibernando as retinas queimadas na garganta do tempo,
Ritmos outros que não sei reproduzir.

E cada linha é uma liberdade por libertar,
Cada palavra um país por fundar,
Cada som o choro primeiro dos Universos
– O que me cerca e o outro,
O que eu limito, reflexo diverso
Do Eu, fronteira última de um jogo de espelhos
Em que os olhos já não reconhecem o rosto
E onde os dedos são personalidades distintas
Ecoando: quem são eu?...são eu?...eu?

De branco pintadas as paredes são
Monotonamente.
Gente monótona esta minha mente.

17 novembro, 2008

Noite de Cristal


Herschel dormia quando ouviu o riso maquiavélico do vidro da montra da loja do seu pai, sobre a qual viviam os dois, ele órfão, o pai viúvo, estilhaçando-se em trinta mil pedaços. De pronto, saltou da cama e correu, sem sentir a frialdade do chão sob os seus pés descalços, para a janela do quarto de onde, privilégio de filho único, podia vislumbrar uma considerável parte de Berlim. Ao olhar, na linha incadescente de um horizonte que se insinuava nitidamente contra a noite escura, a sinagoga onde o seu pai o levava desde que lhe ensinara o significado de se ser herdeiro de David, também o coração de Herschel se partiu em seis milhões de pedaços. Mais do que Berlim, ele viu o perfil da face da sua própria nação sem terra afundando-se no lodo fumegante do solo alemão. Nesse momento, enquanto ouvia vozes de semblante ariano ribombar pela madrugada, Herschel soube no seu coração que teriam de partir. Olhou uma última vez para a sinagoga e viu-a sucumbir ao abraço quente de uma coluna de fumo que escondia o beijo abrasador de uma língua de fogo. Berlim não era mais segura e restava-lhe apenas, na inocência dos seus nove anos, levar o pai pela mão, os pés desnudos pisando flores de cristal semeadas na estrada, em busca de Nuremberga.

13 novembro, 2008

Iniquidade


Educa o indouto a pobre criança
Que será amanhã um dos pilares
Fundamentais dos tempos e lugares
Da diáspora da nossa esperança.

Com pouco se satisfaz, sevandija,
O homem do presente, pacato dogue
Latindo só por comida e grogue.
Pouca gente há que um pouco mais exija…

Há-de vir um tempo justo, pois há-de,
Mas por agora somos mera grei
Guiada p'lo bastão da iniquidade.

A Ignorância assina a sua Lei,
Decreto aprovado p'la sociedade…
E a sociedade somos nós, bem sei!

05 novembro, 2008

Pelagus (III)


Um feixe de luz
Atravessou o espaço
E iluminou-me as retinas infantes,
Rasgando o vazio
Como rasgasse o mar azul
E abrisse ondas de espuma
Com a sua quilha hidrodinâmica.
Ei-lo no céu da noite,
Brilhante,
Procurando porto de abrigo
No meu olhar astrólatra.