31 dezembro, 2012

Paisagem: as cordilheiras da solidão

O céu abre-se,
quebrado em pequenos
pedaços de azul,
líquido e frio,
que caem sobre a face
árida da terra.

Há um monstro,
gordo e escorregadio,
vivendo no subsolo
das cordilheiras da solidão:
um bicho esfaimado
alimentando-se de si mesmo mas
que, por dentro, come-
-nos é a nós.

29 dezembro, 2012

O Jardim de Eros

Num jardim plantado de sonhos
passeiam dois jovens amantes
com as mãos dadas e risonhos,
ignaros do depois e do antes.

Cheiram o perfume das rosas
e entregam-se ambos ao prazer
das sensações libidinosas
que só eles podem colher.

Lá dentro há cravos, girassóis,
flores de cores que só vendo;
cachos de uvas e caracóis
de pêlos púbicos crescendo.

Lá fora, para cá do muro,
passa o tempo que há-de passar,
num jardim plantado de escuro
onde chovem gotas de luar.

26 dezembro, 2012

As Cotovias


Pousam as cotovias nas estrelas,
Nos galhos nocturnos do infinito.
Piam umas às outras como vozes
Que sussurram no espaço fechado
De uma hora que não chegou.
Batem as asas e voam desenhando
As letras invisíveis de um verso nunca dito.
Adormecem as coitadinhas e morrem em pleno voo...

Paisagem: as ruas da minha cidade são as ruas de Londres


Ao longe,
no mar negro do céu,
as estrelas são faróis
que a si chamam os olhares
dos viajantes do tempo, projectores
de linhas rectas e de escadas de infinito
que sobem em caracóis.

Sob os pés, cada rua
tem um perfil único e individual,
as pedras das calçadas desenham-se a si mesmas
cada uma com uma irrepetível impressão digital…

Dentro dos bolsos do casaco
trago as mãos quentes agarradas
à vontade de percorrer a minha cidade
como quem descobre o contacto carnal de Londres -  
ver o que nunca vi nos lugares já vistos,
crescer memórias em todos os sítios
onde ainda não escrevi nenhum poema.

E desembarcar no cais de um rio de uma margem só,
uma mala numa mão onde guardo os livros e os sonhos
na outra mão a tua mão - 
o horizonte onde o rio se deita no mar… 

24 dezembro, 2012

No País do Amor Todos os Dias é Natal

Neste país onde não cai a neve
subleva-se a pura imaginação
que vê as casas de branco caiadas
como se enterradas sob um nevão.

Neste país sem bonecos de neve
nem por isso deixa de haver amor,
podemos subir às amendoeiras
e construir mil bonecas em flor.

Na tua pele branca como a neve
eu viajo num trenó especial
por todos os países do teu corpo
em que todos os dias é natal.

As meninas dos meus olhos

Lá longe,
à janela,
duas meninas
espreitam
o pôr-do-sol
no olhar
de quem as espia
à janela
da sua infância
como se a janela
fosse uma moldura.

Lá longe,
à janela,
as mesmas meninas
aguardam
o nascer do sol
no olhar
de quem as observa
à janela
da sua velhice
como se a janela
fosse um quadro.

Cá longe,
dentro da janela
que se abriu
dentro das meninas
dos meus olhos
há outras janelas
que se fecham
abrindo portas secretas
lá perto
do instante incerto...

11 dezembro, 2012

S/título


Ao adormecer,
senti o vento gélido vindo do mar
a bater com dedos incorpóreos feitos de ar
à minha janela -
e, ao sonhar,
soube que a espuma fria que me tocava os pés
eram beijos depositados nas marés
por quem me embala
ao colo da noite escura.

27 novembro, 2012

Ninfa



Canta, mulher fatal e sedutora,
no doce silêncio do teu sorriso
o gentil fado feito do teu riso,
bela ninfa dos homens pescadora.

No teu olhar mergulho: os pulmões,
ávidos, num mar de fogo queimados.
Só mais um de mil barcos esmagados
pela força das ondas das paixões?

De pouco me servem teus braços brancos -
seguro porto firme onde eu me aporte -,
dentro de ti, quero entregar-me à morte
na lângue curvatura dos teus flancos.

20 novembro, 2012

Paisagem: a serra algarvia



E se ao olhar para a linha do horizonte
só visse corações aos montes,
corações em vez de montes,
como se a terra fosse um peito rasgado
oferecendo uma hecatombe de corações
a céu aberto?

E pelas encostas dos montes vejo sangue
escorrendo na forma de labaredas
como pedras catapultadas flamejantes.

E, em algum momento, prevejo
a tua alma reduzida a cinzas, o ventre seco,
a garganta ressequida, os lábios gretados,
os olhos já sem vida...

De nada te valerão as lágrimas se a tua morte
não tiver orgasmos...

19 novembro, 2012

S/título


Quando fechada a vulva, cosida
a linha e a lenha queimada a cicatriz
por onde nascer? Se a boca não se abrir
por onde escaparão os gritos que ouço
ecoando dentro da minha cabeça, no interior
rasgado das minhas veias? Há fantasmas
de pretas partideiras e bruxas nos recantos
das minhas sílabas - é meu o gemido que elas entoam
quando se despem no escuro quente do tálamo.
E a chuva não lava o sangue nem fura as pedras
das lápides num jardim de recém-nascidos - nem
apaga o azedume do leite coalhado
no interior do nosso ventre.

02 novembro, 2012

Paisagem: um poema inútil



O céu cinzento toca, com os seus dedos de chuva, 
notas soltas nos vidros da janela e no telhado de telha algarvia
enquanto, no rádio, Miles & Coltrane preenchem os momentos de pausa
que respiram entre as gotas da água que musicam o silêncio.

Se eu tivesse os olhos abertos veria as paredes brancas da sala
pintadas pela luz amarelada do abat-jour; mas prefiro mantê-los fechados
enquanto dedilho a mesa de madeira de carvalho onde morre 
a ponta negra de uma cigarrilha e onde vive um copo de vinho alentejano,
exalando um bouquet maduro de frutos silvestres e notas de baunilha.

E ao descerrar as pálpebras, saberei que este poema é tão inútil quanto toda a vida.

28 outubro, 2012

O Outro Lado de Mim


Por vezes interrogo ao silêncio sem sangue
das estrelas quanto tempo demoraria
a separar completamente
toda a carne dos meus ossos
e quanto mais tempo seria, na verdade,
necessário para fazer passar a alma
num sopro pusilânime
para o outro lado de mim?

17 outubro, 2012

A boca: uma caverna



A boca: uma caverna
Habitada por ciclopes monstruosos.
Verbos assombrosos, vorazes consumidores de energia.
As vagas rebentam à luz do dia,
Esmagam-se contra as escarpas,
Na solidão da hora escura,
Há um corpo náufrago e uma alma
Por salvar.
Dentes dão à costa, na praia dos canibais,
Como velhos baús e outros objectos pelo areal espalhados.
Um dente de ouro, pendurado pela raíz,
como fosse um relógio de ouro pendurado pela corrente,
marca a passagem do tempo.
O corpo repousa, à tona, quebrado,
Sem sobreviventes, como um navio.
Uma criança desenha na areia e canta,
À porta da caverna, sentindo a aragem
Como o hálito
De uma boca apodrecida,
Sobre como os monstros não existiriam
Se nós não os chamássemos.
Entretanto, as palavras aguardam, dentro da boca,
Pelo cair da noite.

25 setembro, 2012

A Dança dos Homens


Sob o manto marmóreo do sonho
flui a torrente da realidade líquida,
fervilha o excesso que queima a pele
e a rasga de dentro para fora.
Contemple-se: uma pantera e um tigre
deitados - num abraço num beijo num orgasmo -
numa cama de flores e de grinaldas,
mergulhando no esquecimento de si mesmos.
E como as feras o homem despido
cantando e dançando consigo mesmo (e com os deuses) -
porque todos os homens são ele mesmo (e são os deuses) -
deixa-se embriagar pela renovação da primavera.

12 agosto, 2012

S/título

disseram-me um dia que as estrelas estão todas mortas já
que o brilho no meu olhar é uma reminiscência do passado
que a noite é o reflexo pálido de nós mesmos
sopraram-me ao ouvido segredos só conhecidos dos deuses
bocas de lábios sensuais e frescos habituadas a soprar o vidro
incandescente e a dar forma à abóbada celeste e eterna
no fundo do mar encontrarás uma montanha mais alta
que a mais alta montanha que se inclina para a luz
como um girassol como uma anémona como nós

16 julho, 2012

S/título


uma ponte em chamas liga dois corações
esculpidos no ar em forma de nuvens
no céu pegadas da saudade descalça
apontam a rota para onde voarão os pássaros
que buscam o país prometido

o cheiro das primeiras chuvas
despenetra-se da terra molhada
e as árvores dormem acordadas

valsa o vento os teus cabelos
e os teus dedos bailam no meu peito
nada mais que o silêncio para jurar que te amo

06 maio, 2012

Paisagem: cheiro de maio em flor


No final de um dia de maio perfumado pelo sol da primavera e pelo odor
a orégãos verdes e a raparigas não menos verdes nos seus vestidos de algodão branco,
seria perfeitamente normal que cheirasse a orégãos verdes e à inocência
de raparigas também elas verdes e mesmo que cheirasse ao que cheiram os vestidos
de algodão branco depois de usados. Ainda assim, é outro o cheiro que me invade as narinas...
É outro o cheiro que me inebria os sentidos e os entorpece até à exaustão...
Cheira a corpos percorridos pela electricidade da carne e iluminando o vazio
de um quarto escuro, no silêncio quebrado pela luz de dois cotos de velas
(um ardendo no chão, a cera ainda quente unindo-se aos ladrilhos de pedra fria, o outro
já apagado e fumegante enfiado, à cabeceira, no gargalo de uma garrafa de Jack Daniel's vazia).
Cheira a conas molhadas e a caralhos murchos depois da cópula animal e imediata.
Cheira a juras de amor anquilosadas por orgasmos repetidos.
Cheira a messias de madeira crucificados por cima da cabeceira da cama.
Cheira a cabelos molhados de suor - a cabelos molhados de cansaço.
Cheira a lençóis aquecidos pelo calor dos corpos ambos.
Cheira à chuva miudinha que lá fora lava a face da lua.
Cheira à chuva miudinha que lá fora lava a face da rua.
O estômago ronca e na cozinha há uma sandes de carnes frias à espera de ser preparada.
Também poderão encontrar um tupperware com os restos de chinês que sobraram do jantar.
Só não há, no frigorífico, é cerveja fria. Mas amanhã será outro dia de maio em flor.

08 abril, 2012

Paisagem: o amor aos olhos de um jovem

"Young men's love then lies
Not truly in their hearts but in their eyes"

Shakespeare, in Romeo and Juliet



Reduzamos os jovens no geral
A um jovem e metaforizemos
As paixões nos passarinhos que temos
a esvoaçar-nos, livres, p'lo quintal.

A adejar-lhe, com as asas vibrantes,
Passa no quintal do jovem a vida
Excitante, eléctrica, colorida,
Como os olhos das fogosas amantes.

Mas alimenta, no peito amarrada
Como se numa casota de cão,
A servil e comprometida amada.

Residirá pois o amor deste jovem
(Ao invés de no imóvel coração)
Nos saltitantes olhos que se movem?

S/título


Terão morrido os poetas?
Terá morrido a ânsia de inventar novas poesias?
Novas teologias?
Novas ânsias de ansiar?
Terão perecido as borboletas que pousaram uma vez
nos meus ombros para me ressuscitar?
Sobreviverão só as larvas que se alimentam do bolor?
Ter-se-ão silenciado as vozes
que me falaram de amor?...

07 abril, 2012

Promessa de bons dias


Ela levantou-se da cama e abriu a janela,
para que a madrugada lhe beijasse a carne
branca e macia do interior das pernas - o ponto
quente onde as coxas se juntam. Os pássaros,
vestidos pelas folhas das amendoeiras,
cantavam a primeira luz da manhã - o horizonte
carmesim & cor-de-rosa como as pétalas
das rosas abertas. Na cama, eu esperava
que ela regressasse ao lençol tépido
da ausência do corpo dela; esperava eu
pelo corpo agora frio dela. Quando ela veio,
trouxe consigo a promessa de um raio de sol
e eu, cheirando-lhe o ponto quente de onde
as coxas se separam segredei-lhe vagarosamente
os bons dias numa língua secreta só de nós conhecida.

06 março, 2012

S/título


Há uma brisa que se levanta dentro da tarde de mim
e eu tardo-me pela brisa adentro porque te espero,
confesso-o.
Já o que te sopro, como fosse brisa,
não confesso
às paredes: as paredes são e/ou têm ouvidos,
não é o que dizem?
Mas às paredes nunca disse "amo-te".
A ti disse-o quando te vi: soprei-o sem me tardar.

27 fevereiro, 2012

S/título


Ergo os olhos acima da linha
de água e contemplo
os versos que os seixos desenham
à tona de mim.
Mergulho as mãos, pelo avesso,
no espelho da bacia e desconheço
o cheiro a mel e amêndoas
no fundo das palavras.
À superfície, boiam mortas as folhas
de oliveiras ancestrais;
mas no fundo, lá bem no fundo,
é o teu rosto que me assombra...

21 fevereiro, 2012

"Amanhã Chovi" - a minha obra de estreia literária

Já se encontra à venda o livro de poesia "Amanhã Chovi", obra assinada por mim sob o alterónimo Alexandre Homem Dual, com selo da Corpos Editora/World Art Friends. Quem o quiser pode comprar directamente à editora (em versão livro ou em versão e-book) ou, dentro de alguns dias, nas livrarias. Outra opção é encomendar "Amanhã Chovi" directamente ao autor (ou seja eu), para tal enviando um e-mail para amendual@gmail.com. Para além de um desconto de 10%, ficará com um exemplar com dedicatória e devidamente autografado.




"Delacroix, o pintor, disse certa vez que toda poesia é de circunstância. (...) Amanhã chovi é um livro de circunstância. Parece não falar do agora, usa tempos verbais que se contradizem, usa termos em desuso, abusa das palavras ilimitadas e dos versos que sabem ao que já não está aqui. O poeta, no entanto, consegue aquilo que procura – as palavras não têm tempo, elas permanecem. E a sua permanência diz o tempo presente. A poesia não tem tempo. Ela, quando de facto existe, como neste livro, diz-se a si mesma e às nossas circunstâncias."

Mirian Nogueira Tavares, in prefácio a Amanhã Chovi

13 fevereiro, 2012

S/título

Os dedos frios e metálicos
de uma morte lenta, humana, quente,
escavam a carne e cavam o osso
por dentro, lá onde o futuro
se pode confundir com a alma das gentes.
A voz, anémica, desprende-se das palavras
que ficam, solitárias, nas folhas cobertas
de pó de um jornal, aberto, a preto e branco.
E o silêncio que só é trazido como lembrança
pelo vento que vira as folhas rasgadas...

04 fevereiro, 2012

Os Abutres

Os abutres abriram as asas e foram construir casas
Lá no alto do céu onde não chega o fedor dos mortos.
Voaram sozinhos e deixaram para trás os ninhos
Onde os filhos ficaram aprisionados.
A cabeça calva deixa à mostra a pele muito alva
Dos necrófagos infantes.
E de barriga vazia só um deles é que pia
Ao sentir o cheiro dos mortos.
As árvores já perderam as folhas e as garrafas as rolhas:
Derramou-se o vinho no chão.
Há uvas esmagadas nas ruas empedradas da nossa nação…

26 janeiro, 2012

Açores


No céu do meu quarto
vejo vacas a pastar,
pastam o aroma salgado
do atlântico mar.

Nas paredes nascem
mil videiras que eu trepo
até ao frio e espumoso
chão que é o meu tecto.

Um bando de açores
no céu da imaginação…
Voam-me nove ilhas
em volta do coração.

13 janeiro, 2012

Soltaram os Loucos


Soltaram os loucos! E agora andam os loucos
Pelas ruas gritando, pulando, fornicando,
Agindo os loucos como loucos que são!
Escrevem versos no ar, pintam murais no asfalto,
E põem-se muito sérios a admirar
Os carros que passam e as vidas que passam lá do alto
Dos prédios para onde amarinharam,
Como aranhas, como crianças, como loucos que são.
Dão de comer aos cães vadios e acolhem os gatos no seu regaço
E quando encontram um desconhecido
Não se furtam a dar-lhes um abraço!
E ficam muitas horas a olhar para o céu como quem olha para mais longe –
Dizem que estão à espera que cheguem as naves
Que os hão-de transportar para o espaço,
Para um planeta sem paredes, sem portas, sem chaves…
E assim ficam parados no meio da rua os loucos, como loucos que são,
Desordenando a ordem desordenada de um mundo ordeiro e são,
No meio dos outros que deles zombam como os verdadeiros loucos que são.

12 janeiro, 2012

van Gogh

Há um louco urrando por detrás da minha orelha,
Agachadinho de cócoras, para que ninguém o veja,
Para que todos pensem que o louco sou eu.
Desde criança que os seus urros me moem o juízo
Mas um dia hei-de arrancar a orelha, sem aviso,
À dentada – nem ele saberá o que lhe aconteceu…

11 janeiro, 2012

Oh Capitão


Oh capitão insano,
poucos são os loucos que te dão ouvidos!

Oh insano capitão,
só alguns ou nenhuns te são queridos!

Capitão insano oh
como como como como tu comes de resto!

Capitão oh insano
irmão sob cuja orientação eu me apresto!

Insano capitão oh
A tua vida e o teu comando estão por um fio!

Insano oh capitão,
aqui me afundo eu contigo e com o teu navio...

10 janeiro, 2012

Paisagem: anjos disfarçados de canibais


Eu cheiro o sangue na ruas
vomitado por animais
e sei que entre nós há anjos famintos
disfarçados de canibais.
Deixaram as asas para trás
algures a meio do caminho -
e hoje Deus (se é que há um Deus)
chora no céu sozinho.
O céu azul de Abril é suavizado
por nuvens brancas como almofadas:
é a cama que Deus fez para si mesmo
com milhares de asas arrancadas.
E enquanto esse Deus dorme no céu,
na terra os homens matam seus iguais -
e sei que entre nós há anjos famintos
disfarçados de canibais.

09 janeiro, 2012

S/título



Nos versos ladrilhados do chão que piso
há uma sensação, a cada passo dado,
de areia movediça fugindo por debaixo dos pés
e subindo pelo corpo acima:
preenchendo cada poro,
edificando uma escultura de areia viva no meu corpo,
desmoronando-se a cada sopro ressacado
das ondas do pensamento.

05 janeiro, 2012

S/título


Plana a gaivota
No céu plano outrora
Profundo agora
Carregado de nuvens que lhe emprestam textura.
Busca-me o vento…
Encontra-me a pele,
Encontro-lhe a dele,
E solto-o livre como o vento fosse ave canora.
Canta teu augúrio
A todas as portas
Com todas as notas
Ó ave da tempestade arauta
E avisa toda a alma incauta
Com a tua voz insonora…

02 janeiro, 2012

Paisagem: um céu nocturno despido de estrelas e mil lâmpadas acesas na linha do horizonte


Ao morrer da tarde, o vento traz
o cheiro da tempestade que abraça
o aroma das roseiras: a chuva miudinha
lava a terra e a luz da lua e das estrelas
ilumina as nuvens por dentro: lá
onde o olho humano não alcança.
Colho uma rosa - desfloro-a. Pétala a pétala
engulo a espessura do silêncio que precede
a madrugada.
Ao longe vejo os montes iluminados por mil
lâmpadas acesas como estrelas em casas espalhadas
pelo horizonte mas que não se vêem nos mapas: podes tocar
países inteiros com a ponta dos dedos mas nunca
hás-de fazer cócegas às pessoas que neles habitam.
O céu está negro de nuvens e expectativa de relâmpagos
e despido de estrelas - escondidas para lá
de três mil metros de procela - e eu já não sei
se distingo onde é o céu: se lá
no alto onde a luz da lua não atravessa o corpo das nuvens
se ali em baixo onde as estrelas cintilam nos montes.
Abro os braços como quem abre asas -
grito como quem liga um motor -
inspiro a noite de um trago só como quem liga uma hélice
e sente o vento beijar os objectos nus e claros -
e voo - voo por dentro da noite e de mim mesmo,
ignaro de onde parto e para onde vou.