22 outubro, 2010

Até breve!

Se eu tivesse uma página no facebook, o tópico do dia de hoje (e dos próximos) bem poderia ser:

Valter Ego vai abrir uma garrafa de bom vinho e dedicar-se/deliciar-se com o acontecimento do ano: a disponibilização on line de quase toda a biblioteca de Fernando Pessoa, com acesso às páginas digitalizadas e devidamente anotadas, comentadas, algumas até traduzidas pela mão do próprio Pessoa.
Até um dia destes!

12 outubro, 2010

S/título


Há sangue nas minhas mãos e no meu rosto.

E dedadas impressas a sangue gravadas no interior

Das tuas pernas. E do teu ventre. E os meus dentes

Estão pintados de vermelho, e entre os meus dentes,

Pequenos pedacinhos de carne dependuram-se,

Ainda vivos, como demónios balouçando-se nas estrelas.

E também os teus mamilos sangram, ainda que leite,

E ainda que esse leite seja azedo, alimenta a aridez da terra inóspita.

Há sangue pingando do meu sexo, e pinga para dentro da tua boca

E para cima dos teus cabelos. E o verde aroma a frescos prados

Longínquos que exalava do teu cabelo confunde-se já

Com o cheiro do sangue seco e próximo.

À medida que as horas passam e o silêncio se instala – já

Não há o som ritmado de falos a pingar – parecem os teus olhos sem vida

Seguir-me e a tua boca cheia de sangue querer gritar-me:

É teu, assassino, o rosto da mênstruosidade!

11 outubro, 2010

Paisagem: um oásis no deserto


Todas as portas do país se fecharam naquele dia
- e todas as bocas, só os olhos se mantiveram muito abertos,
em assombro, espreitando pelos postigos das janelas.
As palavras foram atiradas para o fundo de um poço,
talvez a toca do coelho por onde Alice outrora caíra,
e ninguém ousou libertar um grito de revolta.
Os livros começaram por sangrar lentamente até que
perderam toda a tinta, e as páginas ficaram desertas,
tão desertas como as ruas daquele país naquele dia.
Mais tarde, lembrei-me (pouco mais velho seria que a própria Alice)
de espreitar para dentro de um livro e ver como seria.
Então escrevi num papel branco as letras l i v r o
e demoradamente analisei o conjunto formado.
Concluí que só poderia espreitar através do buraquinho
formado pela última letra - nenhuma outra se apresentava
tão consentânea com este meu ambicioso mas pueril projecto.
Aproximei, devagar, o meu rosto ao papel, fechei um olho,
e encostei o outro à última letra. O que vi foi tão marcante
que, a partir desse dia, todas as noites descia, sorrateiramente,
até ao fundo do poço e resgatava, um por um, todos os livros
quantos consegui. E, como que por magia, perante os meus olhos
e as minhas madrugadas, todas as letras ressuscitaram...
Hoje, o meu país já tem livros outra vez,
mas não digam a ninguém: é segredo...

04 outubro, 2010

Retrato: um querubim chorando a divina comédia


Chora um anjo lágrimas de acrílico

Borrando a tela que lhe dá vida.

Como pode tal dor ser inflingida

A um anjinho belo e idílico?


Até suas asas tem recolhidas

– Elas que preencheriam o céu

Se da tela se rasgasse o véu –

Lacrimejantes e entristecidas.


Como te criou assim um pintor?

Que deus te deu a vida sem amor?

Calo-me pois fala o querubim:


– Não é por dor que choro ou tristeza

Que me aflige; é pela negra certeza

De não haver Céu acima de mim…