Contos assinados sob o pseudónimo Valter Ego:
- "O Baloiço Vermelho" (2013, incluído na fãzine de artes Art.Sy #2)
- "A Reconquista" (2009)
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O BALOIÇO VERMELHO
Na Alameda, há um parque de diversões
infantil onde, por vezes, me sento nos bancos de madeira com vista para o
parque, à sombra das árvores onde os pombos arrulham e batem asas, e ali fico a
observar as crianças brincando nos baloiços e nos escorregas. Em outras
ocasiões, gosto de me sentar de costas para o parque, com a face voltada para o
poente onde o calor do sol dos finais de tarde sempre me entorpece os sentidos,
de forma que possa ouvir o som do riso pueril enquanto leio ou escrevo. Mas, na
maioria das vezes, prefiro sentar-me longe do parque, nos bancos mais escondidos
que estejam disponíveis, onde possa não ser incomodado pelos infantes correndo
e barafustando de um lado para o outro.
O que experimento, de todas as vezes –
de todas, sem excepção –, quando sinto a proximidade do parque e dos seus
baloiços movimentando-se para trás e para a frente, numa repetição frenética
que facilmente se poderia julgar indissociável da própria passagem do tempo, é
a impossibilidade de não me recordar do baloiço vermelho da minha infância.
O meu pai construiu-o, tinha eu não sei
que idade pois sempre me lembro de o ver, ali mesmo, baloiçando no quintal da
nossa velha casa: tantas vezes empurrado pelas mãos paternas, e outras tantas
pelos dias em que soprava o vento ou mesmo pelos dias em que não soprava vento
algum – sempre, sempre baloiçando para cá e para lá.
Minto – não sei se foi o meu pai que o
construiu ou não. Provavelmente nem terá sido, pois o meu pai foi, durante toda
a sua vida, empregado de escritório na secção de contabilidade de uma firma de
venda de automóveis, e nunca se manifestou notoriamente bom com trabalhos
manuais – foi no reino dos números e nas mesas de snooker, dono de um invulgar talento aritmético com um taco e as
bolas, que se notabilizou. Também nunca lhe perguntei quem teria sido o
construtor do baloiço, verdade seja dita. Não por falta de curiosidade mas
porque sempre preferi contar a mim mesmo a história de que tinha sido ele a
projectá-lo e construi-lo, a pedido meu, talvez como prenda de um qualquer
aniversário ou natal. Gostava de acreditar que ele construíra aquele baloiço
vermelho, segunda uma fórmula matemática antiga e mágica, exactamente alinhado
com uma qualquer constelação de estrelas da qual eu desconhecia o nome, para
que um dia, quando tivesse forças suficientes para me projectar a mim mesmo, eu
me lançasse, como se eu fosse o Super-Homem, na direcção daquele pedacinho de
céu.
Quantas vezes não me sentei eu naquele pequeno
banco de madeira pintada de vermelho, suspenso por duas grossas correntes às
quais eu me agarrava, baloiçando para a frente e para trás e para trás e para a
frente, fixando o olhar para além de um céu azul ou de um céu cinzento, de uma
nuvem branca ou de uma nuvem negra, para além dos pássaros e das borboletas e dos
aviões que rasgavam o céu. Quantas vezes não cresci eu um pouco mais para fora
de mim próprio: quando uma funcionária da escola me repreendia, quando um livro
de banda desenhada dos meus super-heróis favoritos se rasgava, quando um braço
ou uma perna de um boneco se partia, quando o meu pai se embriagava, quando um
animal de estimação morria – e eu tive tantos! –, quando perdia a jogar à bola
na rua com os amigos – e eu tive tão poucos…
De todas essas vezes, tentava eu impulsionar o baloiço com força, cada
vez mais força, como se a fasquia a que eu, furiosamente, me propunha fazer o baloiço subir fosse
precisamente a altura a que eu elevava a estatura do meu próprio corpo. Era nas
estrelas que eu não via mas que sabia existir que eu fixava o meu olhar, era
para lá do mundo que eu conhecia que eu queria voar.
Em determinado Outubro, tinha eu os
meus oito anos, penso, acordei a meio da noite por vozes familiares que provinham
da cozinha. Levantei-me da cama, recordo-me que o chão era frio, abri a porta
do quarto e espreitei para o corredor escuro. Nessa altura, já eu pensava ter
perdido o medo aos monstros que se escondem nas salas fechadas das casas, dentro
dos armários e das gavetas, debaixo das camas; hoje, eu sei que nós jamais
perdemos o medo aos monstros que se escondem nas esquinas sombrias da nossa
imaginação. O som das vozes ouvia-se então mais alto e as palavras quase
perceptíveis. Da cozinha, praticamente ao fundo do corredor, chamava-me uma luz
branca a qual eu segui – mas sem a coragem necessária para entrar. Fiquei
escondido na penumbra do corredor, de pés descalços e vestindo um pijama azul,
a ouvir o meu pai falar com um dos seus irmãos. A princípio não compreendia o
que eles diziam ainda que entendesse claramente as palavras pronunciadas. Mas
algum tempo depois (horas?, minutos?, segundos?, não o sei dizer), alguém
carregou num interruptor e a luz eléctrica iluminou não só o corredor onde eu
estava bem como tudo aquilo que tinha ouvido antes e que se resumia tão só a
isto:
– Ele matou a miúda.
Ele era um outro irmão de meu pai. E a
miúda era a sua própria filha. Ele estrangulara-a, com um arame, nessa mesma
noite – a própria filha, uma menina de três anos. Depois, deixando-a sem vida
em cima da cama, o pequeno corpo tapado por uma colcha de renda branca, foi
para a feira. Quando a polícia o apanhou, caminhando de volta para casa, trazia
nas mãos um boneco de peluche. Antes que alguém me descobrisse, corri para a
sala. A televisão estava ligada – o meu pai deveria estar a ver o filme que era
exibido quando o meu tio lhe fora dar a inquietante notícia. Não sei que filme
seria mas recordo-me de olhar para o ecrã e ver uma mulher jovem que chorava,
chorava muito. Depois disso, nem sei como, consegui, de alguma forma, destrancar
a porta da rua e sair para o quintal. O céu estava completamente límpido, o ar
era frio e senti o abraço do outono por baixo do pijama. Corri, descalço, para
o baloiço sentindo a terra fria, as ervas húmidas e as pedras duras sob a pele
fina dos pés. E esticando todo o meu corpo, contorcendo-me como sempre tinha
que o fazer, consegui sentar-me no baloiço para fugir àquele mundo – o meu
mundo.
Comecei a dar balanço, não muito forte
a princípio mas cada vez com mais força; de cada vez que direccionava as pernas
para a frente sentia que tinha conseguido ir um pouco mais além, um pouco mais
alto. O olhar estava fixo no céu, numa qualquer estrela que brilhava mais do
que qualquer outra, e os objectos ao meu redor começavam a girar e a perder as
fronteiras da sua nitidez, enquanto eu imaginava que, presa ao meu pijama azul,
uma capa vermelha esvoaçava pelo ar atrás de mim. O mundo que me rodeava andava
à volta como se fosse um carrossel e vi as intensas e coloridas luzes
ferindo-me os olhos não como se eu estivesse na feira mas como se a feira
estivesse ali no quintal da minha casa. Cheguei até a sentir-me no meio de uma
multidão de rostos deformados, e que riam à gargalhada sem que no entanto
sorrissem, enquanto me observavam baloiçando para trás e para a frente, ao som
frenético das músicas estridentes da feira.
Cada vez mais rápido, via como a própria
estrela parecia crescer perante os meus olhos como se se aproximasse mais de
mim, ou como se eu me aproximasse mais dela, e jurava poder sentir o calor da
sua luz intensa na minha testa e nas minhas bochechas. Entretanto, recordo-me
que ouvi o meu pai chamando pelo meu nome várias vezes. Olhei para trás e vi-o,
ao lado do meu tio, parados à porta de casa, a olhar para mim. Eu nada respondi
e, voltando a fixar o olhar na mesma estrela (ou seria já outra, porventura?),
dei ainda mais balanço e comecei a chorar, exactamente tal como a senhora do
filme na televisão.
Eu bem sei que não dei o balanço
suficiente para que o meu frágil corpo de oito anos fosse projectado na
direcção das estrelas como pretendia; mas sei também que o menino que, naquela
noite, se sentou no baloiço vermelho não mais voltou a pisar esta terra. Agora,
dele só me restam as memórias dos seus olhos negros, ingénuos e molhados, assim
como a esperança de que, seja lá para que estrela tenha sido catapultado, ele seja
muito feliz e que cuide bem da sua pequena prima.
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A RECONQUISTA
Era uma vez um cavaleiro de armadura
brilhante que vinha atravessando Portugal, de norte para sul, liderando o seu
exército de nobres através das planícies e das serras lusitanas. Na altura,
ainda a auto-estrada Lisboa-Algarve não tinha sido planeada quanto mais
inaugurada. O caminho não se fazia, portanto, num par de horas puxando os
cavalos a cento e cinquenta quilómetros horários – nem os pobres bichos
aguentariam tal ritmo. O percurso tinha que ser feito vagarosamente, passo a
passo, uns quantos pelos seus próprios pés (e entre estes diferenciavam-se os
calçados e os descalços) e outros pelos pés dos solípedes – sim, que nisto da
guerra, como em tudo na vida, são todos iguais mas sempre há uns que são mais
iguais do que os outros.
O
exército, que é como quem diz, o cavaleiro que os liderava, a cavalaria que lhe
acompanhava o passo pouco estugado, a infantaria calçada e a infantaria
descalça, havia chegado ao litoral algarvio e seguia agora pela linha da costa.
Dirigia-se a Santa Maria de Faaron, último bastião dos infames mouros no
território que viria a ser português. O cavaleiro, que era na verdade o rei de
toda aquela gente e mais alguma, era um homem alto, possuidor de um olhar
másculo por detrás do elmo de ferro que lhe cobria a fronte endurecida pela
vida, mas ao mesmo tempo régia, com uma altivez que lhe viria certamente do
sangue azul e da alma nobiliárquica. Um jogral talvez se sentisse tentado a
acreditar que a espada que trazia embainhada à cintura servia para escrever cantigas
de amor na terra castanha da sua pátria (como se ordenasse o próprio país tão
nobre e cortês quanto ele), nunca para matar; uma donzela talvez se sentisse
tentada a acreditar que aquela mesma espada servia para lhe arrancar as suas
vestes uma por uma, na antecâmara do momento da junção amorosa dos seus corpos
(branco e tenro o dela, moreno e varonil o dele), nunca para matar; uma criança
talvez se sentisse tentada a acreditar que aquela espada (e agora já não
descansa embainhada, o cavaleiro segura-a pelo punho, já se vê um palmo de
metal reluzente) servia para matar dragões, e os dragões não existem, a criança
sabe-o, mas poderia muito bem ser uma espada com poderes mágicos e servir para
matar dragões… Mas não é de jogral nem de donzela nem de criança a voz que
conta esta história, é a voz do sangue dos que já pereceram sob o seu jugo e,
por isso, saibam que aquela espada tem um só propósito: matar mouros.
“Desembainhem
os vossos ferros!”, gritou o cavaleiro que era rei enquanto tirava, a todo o
comprimento, da bainha que a guardava em repouso, sem sair do cavalo, a pesada
espada em forma de cruz cristã.
E
um outro cavaleiro, de túnica branca sobre a armadura e com duas grandes faixas
vermelhas perpendiculares que se cruzavam no peito, gritou:
“Mirem!”
Diante
dos milhares de olhos intrigados do exército, centenas de homens de ar oriental
carregavam às costas, em fila indiana, sacas com produtos agrícolas, pescado e
minérios, descarregando-as em muitos barcos que se perdiam da vista ancorados à
beira-mar. Os exóticos trabalhadores continuaram a sua tarefa como se a tropa
que os observava nem ali estivesse. O cavaleiro que liderava o exército disse
então a um dos seus súbditos, de entre todos o mais versado nas línguas
estrangeiras:
“Ide-vos!
Indagai quem são.”
O
nobre desceu do seu cavalo e dirigiu-se a um dos trabalhadores que havia parado
a sua lida por alguns momentos para, sentando-se, descansar. Perguntou,
primeiro em grego, quem era o homem e os seus companheiros. Mas não obteve
resposta. Depois, falou em latim. Mas também não obteve resposta. Por último,
falou em árabe. Mas, mais uma vez, o guerreiro poliglota não obteve resposta.
Na verdade, o homem nunca sequer olhara para ele, como se não o tivesse visto
ou sequer ouvido. Por fim, levantou-se e pegou na sua saca, pronto para
continuar o seu trabalho. Colérico por ser completamente ignorado, o nobre
cavaleiro levantou o seu braço bem alto, com a sua espada bem firme segura que
estava pelo pulso fechado, e desferiu um golpe sem piedade no homem que carregava
a saca às costas. Mas o homem continuou seguindo, como se nada fosse. O nobre
quedou-se, parado, de espada na mão, sem saber como tinha falhado o golpe. O
seu rei convocou-o para junto de si:
“Andai,
vamo-nos. Esses pobres coitados não nos farão mal.”
“Não
entendo como falhei o golpe”, respondeu o nobre.
“É
do calor infernal desta terra esquecida por Deus”, respondeu um outro, enquanto
se benzia, norte, sul, este, oeste, ámen.
E
assim seguiu viagem o exército, deixando para trás a interminável fila indiana
de homens com sacas às costas e os seus barcos que se perdiam no horizonte do
Mediterrâneo.
Nessa
mesma noite, descansava o exército no acampamento levantado quando o vigia de
serviço gritou a acordar toda a gente.
“O
que há, homem?”
“Olhai,
meu Rei…”
Uma
névoa branca envolvia o arraial, num ritmo lento mas cada vez mais apertado,
cada vez mais sufocante. De quando em quando, uma mão ou um braço ou uma perna
que se adivinhavam femininos materializavam-se saídos da névoa e tentavam
alcançar os corpos dos soldados cristãos. Tudo se aquietou por momentos. A
névoa cessou o seu movimento mas estava lá, cercando o acampamento. De repente,
tomaram forma os corpos de uma, dez, cem, mil, dez mil, cem mil mouras, tantas
mouras quantas os olhos podiam açambarcar, elas mesmas eram a névoa, e
avançaram um passo para dentro do perímetro de defesa estabelecido pelos
homens. Os corações dos soldados palpitavam como se acompanhassem de memória o
bailar pírrico das suas passadas militares, as suas mãos e os seus rostos ressumavam
de luxúria e as suas inexoráveis narinas cheiravam a névoa como quem cheira a
pele perfumada de uma rosa transformada em mulher. Mas então o cavaleiro que
era rei pegou na sua espada e, reflectindo a luz do luar que era colhida por
centenas, milhares, milhões de pétalas de centenas, milhares, milhões de
amendoeiras em flor, projectou a luz contra a névoa e as mouras desvaneceram-se
no ar, como se nunca tivessem existido.
“Que
terra amaldiçoada é esta?”, gritou uma voz do meio da multidão de soldados,
agora já livres da sua prisão de lascívia.
“Ide
dormir, o sol nasce daqui a umas horas, eu próprio ficarei de guarda”.
E
assim ficou de guarda o rei que era cavaleiro, mas que se encontrou arredado do
seu cavalo e do seu sono, olhando para o céu da noite, esperando, desejando…,
que as mouras encantadas voltassem para o levar. Mas as horas que ainda
faltavam cumprir da madrugada foram sendo povoadas somente pelo ressonar em
coro dos guerreiros que sonhavam, também eles, com as mouras de bruma e pelos pensamentos
do rei. Desfilaram-lhe pela memória a Condessa de Bolonha, mulher por quem era
loucamente apaixonado mas a quem tivera de abandonar para se cumprir Rei de
Portugal e do Algarve. E ainda assim, já viria tarde. Por não ser primogénito,
não herdara o trono por direito próprio. Teve que esperar pelo apelo papal
vindo de Roma para roubar o trono ao irmão em Coimbra. E Rei do Algarve já
outros antes de si se haviam proclamado de tal forma. Via-os a todos, Matilde a
segunda de Bolonha, Sancho o segundo de Portugal, Afonso o décimo de Leão e
Castela, Inocêncio o quarto da Igreja Católica, até o seu pai Afonso o segundo
por lá andava, tal como os outros, desfilando pela noite, saltando de estrela
em estrela, acusando-o, no silêncio do ébano celeste, da impureza das suas
armas – por não ser primogénito, não podia usar armas limpas, ou seja, não
podia usar o brasão do seu pai. E o rei gritava em silêncio para o céu:
“Estão
sujas as minhas armas do vosso sangue!”
Só
das mouras e da névoa é que nem sinal e o crepúsculo matutino anunciava-se.
Assim
que o sol rompeu, o exército pôs-se a caminho do seu destino e, passadas
algumas horas, chegou a Santa Maria de Faaron. Caminhavam devagar, homens e
cavalos, unidos por um comum espanto ao observarem a cidade que, deserta, se
construía perante os seus olhos. Nem uma viva alma. O Rei mandou o exército
deter-se e prosseguiu, sozinho, pelas ruas desertas. Percorreu, cauteloso mas
pleno de curiosidade, cada palmo do corpo da povoação como quem está tomando
contacto, pela primeira vez, com o corpo de uma amante espúria. Rua após rua,
edifício após edifício, Santa Maria de Faaron erigia-se perante os seus olhos:
a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a Ermida do Pé de Cruz, a Cerca
Seiscentista, o Convento de São Francisco, o Palácio de Belmarço, a Casa das
Açafatas, o Banco de Portugal, a Doca, as Muralhas, Passado e Futuro
erguendo-se perante os olhos do Presente.
Chegado
à porta de uma grande muralha, deteve-se. Estava diante do Arco da Vila, a
entrada principal para a Cidade Velha de Santa Maria de Faaron onde, no seu
coração, encontraria a velha Sé. Debaixo do Arco, encontrou um homem, vestido
com estranhas vestes que o rei nunca havia visto: um fato negro, uma camisa
branca e gravata também ela negra.
“Quem
sois?”, perguntou o rei.
“Chamo-me
Renex Goscinnix. E tu és Afonso o terceiro a quem chamam o Borgonhês”,
respondeu o outro.
“Aos
grandes homens, precede-os a sua fama”…
“Não,
nem por isso. Nunca sequer tinha ouvido falar de ti”.
“E
como sabeis meu nome, insolente”?
“Sou
escritor. Os escritores sabem destas coisas”.
Afonso
olhou o estranho sujeito de alto a baixo antes de lhe perguntar:
“E
os mouros onde estão”?
“Andam
por aí. Tens que abrir os olhos se quiseres vê-los”.
Afonso
tinha percorrido todo o país para vir guerrear os mouros. Mais do que isso,
tinha abandonado Bolonha, rejeitado a mulher e renunciado ao título de conde
para voltar a Portugal e reconquistar o Algarve aos mouros. Dom Afonso III, Rei
de Portugal e do Algarve, soava-lhe bem ao seu ouvido monárquico. Mas para
isso, tinha que se bater contra os mouros, tinha que os expulsar de Santa Maria
de Faaron, tinha que ganhar esse direito! E onde raio estavam os mouros?
“Andam
por aí. Já te disse que tens que abrir os olhos se quiseres vê-los”,
respondeu-lhe Goscinnix.
E
porque não se mostravam eles? Porque não vinham ao seu encontro e lutavam como
homens?
“Já
alguma vez viste um céu tão azul como o céu do Algarve, Afonso? Não viste, não.
Aqui as próprias vontades são cerúleas. E quem cá vive tem medo que o mar os
engula. Ou que o céu azul lhes caia sobre a cabeça”...
Afonso
perguntou então ao homem porque cairia o céu em cima da cabeça dos habitantes
do Algarve.
“Porque
eles vivem no vento que beija a ria. Porque eles vivem nas pedras com que foi
construída a muralha. Porque eles estão-te no sangue, Dom Afonso de Portugal.
Porque o teu Deus não aceita o prazer herético de que o espírito dos homens
possa ser o espírito das coisas e o espírito dos lugares todos num só. Porque
eles são vós”.
Afonso
olhava para o estranho homem que dizia estranhas coisas (qual mais estranho, o
homem ou as coisas?) e, subitamente, sentiu os seus dedos tactearem, já não a
rédea do seu cavalo, mas o punho da sua espada, escrevendo em letras
invisíveis, o que o seu pensamento urdia:
“Contos
para crianças”….
E
Goscinnix, sabendo-o, disse-lhe:
“Sabias
que a palavra conto vem do verbo latino contueor que significa
contemplar, olhar atentamente para qualquer coisa? Larga a espada, Afonso
terceiro de Portugal, larga-a e larga o teu escudo e olha em teu redor. Abre os
olhos e contempla”.
Descendo
então do seu cavalo, e deixando nele a sua espada e o seu escudo, Afonso subiu
então a rua que nos leva, ainda hoje, também a nós tal como levou a ele, desde
o Arco da Vila até ao Largo da Sé. Lá, abriu os olhos pela primeira vez na vida
e olhou, não, viu: fenícios, gregos, cartagineses, romanos, visigodos, árabes,
espanhóis, ingleses, alemães, suecos, todos juntos, comendo, bebendo, rindo,
dançando. Uma autêntica feira da amizade onde ora saem uns carapaus alimados,
ora sai uma perna de borrego no tacho, xarém, eu cá prefiro chamar-lhe papas de
milho, vai umas ervilhas com ovos ou umas favinhas à nossa moda, um
gaspachozinho para refrescar que o dia está muito solarengo. E a quem for
guloso se avisa que guarde um espaço na barriga para receber umas estrelas de
figo e amêndoa, uma fatia de folar ou uns dom rodrigos. E risos, muitos risos,
a regar o vinho e a sangria que rodavam de mão em mão e de boca em boca. Ao
longe, Afonso tudo e todos observou. E sentiu-se feliz porque se sentiu em
casa. Era finalmente Dom Afonso, o terceiro, Rei de Portugal e do Algarve, e
havia reconquistado o que de humano perdera.
E
então, Afonso, antes que alguém notasse a sua presença, recuou para uma ruela
que se afastava da grande praça. Essa mesma ruela que dá para um pequeno jardim
cheio de figueiras e de amendoeiras e de muitas outras árvores que não dão
fruto mas dão peixe, ainda que algumas não passassem de imaginação sua (ou será
da minha?), e subiu para um pedestal que lá estava e que parecia esperá-lo
desde sempre. E então as suas vestes e a sua pele começaram lentamente a
tornar-se de pedra, só os seus olhos se mantiveram humanos e ganharam um brilho
no olhar. Hoje em dia, a estátua que lá está não é o corpo petrificado de
Afonso. Alguém o levou e o substituiu por uma estátua onde o Rei de Portugal
que era cavaleiro e que se tornou Rei também do Algarve surge com uma pele
metalizada e já não com uma pele de homem ou com uma pele pétrea. Dizem que
foram os mouros, para libertar a alma do Rei da sua prisão de pedra e deixá-lo
viver no vento que beija a ria e nas pedras da muralha e no sangue do Algarve.
Mas
tenho cá para mim que, nos dias de chuva ou de nevoeiro, se fixarmos os olhos
durante algum tempo na estátua que lá está na Cidade Velha, podemos ver a
figura do Rei a abrir as pesadas pálpebras e observar as suas retinas a brilhar
tão intensamente que podemos quase pressentir a marcha lenta de um exército de
conquistadores marchando de norte para sul, buscando a reconquista do Algarve,
a reconquista de si mesmos.
E
foi assim que uma vez
Tudo
isto sucedeu.
Não
o foi, dirão vocês…
Assim
seja, digo-o eu…
FIM