28 maio, 2009
águas passadas
depois de esquecidas as palavras depois
dos corpos sucumbirem ao cansaço do
plenilúnio líquido das promessas falsas
como juraria eu amar-te se sempre
te amei em silêncio o molhado silêncio
depois do sol se pôr na porvindoura maré
que te depositou aos pés os lençóis
mudos de silêncio o molhado silêncio
teia construída pelo cantar dos búzios
ou seriam ostras que me deste a provar
à preia-luar junto as mãos abertas em
forma de concha e sonho lagoas onde
te sopro as velas pandas os olhos líquidos
escutando-te as orações arrependidas
e esfoladas de um céu aquífero pelos
teus joelhos suportado de sereia
no final depois do molhado silêncio o suor
dos corpos que encharcaram camas as lágrimas
que secaram ribeiros as palavras que
molharam o silêncio apenas resta o cheiro
a terra húmida e a águas paradas
Poema publicado originalmente no blog Porosidade Etérea
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "nova alexandria",
Poesia
27 maio, 2009
Engavetado em
amendualidades
Auto-Retrato
Uma vez inventei um homem que sonhava
Estar à porta de uma casa sem paredes.
Mas não pude resistir à curiosidade
De espreitar pelo buraco da fechadura.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Amanhã Chovi",
Poesia
24 maio, 2009
S/título
Há algo de canibalesco no meu olhar,
Algo de incontrolável abrindo
As suas terríveis mandíbulas
E cerrando as suas presas em cada verso
De cada poema que se perde
No abismo dos meus olhos.
E sinto as íris salivando-se
À medida que os meus dentes
Trituram os sons e o seu esqueleto
Até restar nada mais que o pó
Soprado pelos lábios contraídos em forma de O
Do poeta que antropofagi.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Amanhã Chovi",
Poesia
22 maio, 2009
S/título
A sombra projectada na parede suja
E caiada
Tisna a face da aldeia
Perdida algures entre a serra algarvia
Ou a planície alentejana.
Não é o local que importa,
É sim o frágil fio que suporta
No vazio
A identidade obliterada de uma face respirando vida
Mas que, sendo pétrea, se esfinge morta.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Amanhã Chovi",
Poesia
20 maio, 2009
"7 Poemas, Uma Vida" (versão completa)
Terminada a publicação do último poema do conjunto "7 Poemas, Uma Vida", composto precisamente por sete textos, procedo à sua publicação integral na outra face do Amendual (aqui).
7 Poemas, Uma Vida (VII)
Vejo-o no vazio,
Sinto-o na ausência,
Sombra saltando na sombra,
Nas sombras se movendo
Elegante,
Felino,
No silêncio da memória que o não esquece
Fora da moldura incapaz de o prender
No espaço
Ou no tempo…
Ouço-o com a pele
Arrepiada ao som das suas pegadas
De rei-caçador
Farejando a sua presa imóvel,
Invisível – quão invisível –
Inexistente excepto no odor a brincadeira
Que o dançar serpenteante do seu rabo denuncia…
Sinto-o na ausência
Nos cantos escuros da casa que foi sua
E da memória que o não esquece…
Tenho-o comigo
Aconchegado no coração
Como aconchegado estava da primeira vez
Que escolheu para sua cama o meu colo
E fez da minha pele e da minha carne
A pele e a carne suas
Amassando pão com as garras afiadíssimas
Na pele e na carne nossas.
A minha alma cheirou as janeiras,
Deixou-me com as memórias e o fio de juta
E não sei se alguma vez irá voltar…
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "7 Poemas Uma Vida",
Poesia
7 Poemas, Uma Vida (VI)
À janela olha,
Observador,
O mundo como se desenrola
Perante seus olhos de gato-menino
Farto do conforto do quarto
Curioso de aprender o que não sabe.
Da esquerda para a direita, uma senhora
E um senhor, lado a lado, sem conversar;
E no sentido inverso, duas crianças a brincar;
Atrás de um carro estacionado um cão
E os carros na estrada passam sem parar,
Dia e noite…
Dia após dia…
Noite após noite…
Semana após semana…
Mês após mês…
Ano após ano…
Nuvem após nuvem, ora secas ora carregadas de água,
Ah como gostaria de se molhar e de fugir à chuva!
Sol após sol, ora tapado ora descoberto,
Ah como gostaria de sentir a luz quente na pelagem!
Vida após vida…
E o gato-menino
Um dia descobre
O seu reflexo no portal vítreo
Que reflecte o reflexo do seu olhar felídeo
Onde se reflecte assanhada a sua alma:
O gato-menino é já gato-velho,
Tem o pêlo gasto e a alma assanhada
Domesticada…
E o gato, menino velho, velho menino, gato!,
Vira as costas à janela,
Vai beber leite na sua tigela
E procura um sítio escuro para dormir
Em silêncio…
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "7 Poemas Uma Vida",
Poesia
14 maio, 2009
7 Poemas, Uma Vida (V)
O miau abre
Sensual e furtivamente
A sua boca sem fundo
Enquanto o pobre piu-piu
Se entrega a um tango
Sem movimento
Tendo por parceira a própria morte.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "7 Poemas Uma Vida",
Poesia
12 maio, 2009
Cleópatra Dançarina
Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde
Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...
Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.
E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas
Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Amanhã Chovi",
Poesia
10 maio, 2009
Pelagus (XXIX)
Nu ábaco da maré que pre-
-enche o trilho sideral que zingamos
Mente a veia nílica
Do corpo no de Cleópatra
Violentada por mil balaústres
Balaustrada pelo vento vil que nos soprou até aqui.
No espaço aberto o sangue e o sémen têm cor mas
Não têm odor
Nem gravidade.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
Pelagus (XXVIII)
Sob o ferro somos
Aqui, ali, que importa onde?
Ainda que mil mares abríssemos
Nunca deixaríamos de acometer o teu olhar
Negro e azul,
Cleopátria.
Somos sob o ferro
Escravos e livremente ancorados
Na eterna flutuação oblíqua do teu ventre, oh Mátria,
Procurando o porto universal.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
Pelagus (XXVII)
Rumo ao desconhecido
Largamos âncora
Achando fundo
No ventre da preia-mar
Onde duas ondas se tocam
E se tornam uma.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
09 maio, 2009
Dom Pedro
Dom Pedro era um velho que jurava
Serem as lágrimas por si choradas
Quem lhe deixara as faces enrugadas...
E eu, jovem sábio, sempre lhe indagava:
“Mas se as lágrimas são só feitas de água,
Como te marcaram, dia após dia?”
Ao que a pétrea figura respondia,
De olhar cheio de ternura e mágoa:
“Pois se a água, amigo, até perfura
(Faca na carne, roda até doer)
A pedra de entre todas a mais dura,
Como podia marcado não ter
Um rosto amolecido p’la amargura,
Um velho rosto farto de viver?...
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Insanabile Cacoethes Scribendi",
Poesia
08 maio, 2009
Pelagus (XXVI)
Os vítreos cones partidos,
Destroços à deriva,
Derramam a sua areia sobre a sirte
Avistada.
Há um planeta de areia
A acenar
Aos corações partidos
Dos novos argonautas.
Dali já não sairão.
O nosso tempo esgotou
Mas não sem que encontrássemos o nosso paraíso:
Nova Alexandria, Cleo-
-pátria.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
Pelagus (XXV)
As retinas cansadas
Descobrem para lá das pálpebras cerradas
O Fogo de Sant’Elmo
No tope do mastro in-
-tenteado
Opondo a sua vela imaculada
À vontade quebrada do espaço.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
07 maio, 2009
S/título
À força dos braços e à luz das velas
Constrói o homem o seu futuro.
Suporta no ombro másculo e duro
O peso de um céu pojado de estrelas.
Com espírito divino em corpo de homem,
Desafiando a Lei da Gravidade,
Rumo ao estelífero céu sem idade,
Vai para onde só os deuses sobem.
Eis, aurifulgente e piramidal,
Quando o primeiro sol cruza a manhã,
O monumento sobre-natural:
Alcançando o tecto do Egipto nobre,
Anunciando a sua temporã
Divindade, deixando o céu mais pobre...
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Insanabile Cacoethes Scribendi",
Poesia
06 maio, 2009
licantrópico de câncer
eis o centro do universo o ralo da banheira
por onde a água suja do meu banho se escoa
apenas um punhado de cabelos misturados
com sabão permanecem vivos tudo o resto morreu
sugado pelo pequeno buraco negro debaixo dos meus
pés
.........todo o cosmos perdeu a sua cor e a banheira
.........voltou a ter a sua característica cor branca
.........como folhas de amendoeiras albinas
eis o afterlife o espelho onde sulco
versos na superfície plena de água vaporizada
quando penteio os cabelos molhados
não me vejo devido ao efeito de condensação
da água
...............limpo a lagoa do poema com a palma da mão
agora já te vejo
olhos negros como o ralo da banheira por onde todo
o universo se escoou cabelos longos e entrelaçados
como os fios da história que nunca contaste os dedos
secos pelo hálito das palavras a boca aberta
como uma vulva promíscua acenando a língua à multidão
de sentidos e o espaço inter-dental colorido pelo sangue
das gengivas que se vazaram
.....................................................as tuas gengivas albinas
pulmões secos e ressequidos no lican–
–trópico de câncer
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "nova alexandria",
Poesia
05 maio, 2009
Auto-Retrato
Ao lamber um borrão de tinta do meu dedo,
Surgiu-me na língua a ideia de usar
O céu da boca como Capela Sistina
Mas, em vez de pintar a Criação, fazer
O meu auto-retrato. Mas não sei que diga.
Por agora, só me ocorre dizer que tenho
(E normalmente não escrevo em alexandrinos)
A pele marinada p’lo sol mediterrânico.
De resto? Satanista. Comuneu. Atânico.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Amanhã Chovi",
Poesia
Auto-Retrato / Paisagem Vista Por Turista Numa Praia do Rio de Janeiro
Eu–
.....–tí–
........_–como
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Insanabile Cacoethes Scribendi",
Poesia
Macaquinho de imitação
Macaquinho maca–
–cão
Macaquinha maca–
–rrão
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Insanabile Cacoethes Scribendi",
Poesia
04 maio, 2009
Pelagus (XXIV)
Imponente,
A figura de proa
Rasga a zona fótica,
Os olhos luciferinos aclarando
O espaço negro à sua frente
Sirgando às cegas
As palavras tombolares
Que jamais alguém tomara pela mão
Enquanto uma fiada de sondas
Percorre o rumo pré-determinado,
Serialmente,
A intervalos regulares,
Sem nunca devolver o eco,
Perdendo-se numa zona de silêncio.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
Pelagus (XXIII)
Aqui jaz naufragada uma confissão escrita para não ser lida.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
Pelagus (XXII)
Desperta
O nebuloso acaso
Que encerra-
-nos corações enterra
O porvir
Da névoa incerta
Que trai o cair
Da noite
Sempre certa
Piscando relampejos
No seu sinal
Ora exposto
Ora eclipsado.
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "Pelagus",
Poesia
03 maio, 2009
alamedas celestes
sento-me nesta alameda onde todas as minhas memórias
são plantadas nesta esplanada de onde aceno ao empregado
de mesa que quero o costume uma bica se faz favor aceno
também à criança que houve em mim e à infância de um céu
limpo depois de engolido o líquido negro e amargo açucar só
no primeiro café o da manhã espeto palavras como agulhas
na língua dormente até ela
notem como construo a frase utilizando para sujeito não um pronome possessivo mas um pronome pessoal que transporta a língua a minha para uma esfera fora do plano do eu
_____...................................sangrar e até o sangue rubro
se misturar com o castanho do café e até esta mistura
se misturar com a saliva branca e até que a língua volte
a adormecer e a sonhar alamedas depois posso finalmente
abrir os olhos com um sorriso fingido nos cantos da boca
e vejo o céu coberto por uma nuvem de pombos
cinzentos de que outra cor poderiam ser os pombos migrando
da minha para outra qualquer memória e depois do bando
passar o céu já não é cerúleo mas gris e desmorona-se
a cada segundo que passa e a cada grão de café esmagado
pelas raízes da minha placenta
..... ___________....rebentaram-me as águas
_______________.e o céu é novamente limpo
___............_______.pela última e primeira vez
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "nova alexandria",
Poesia
sonhos cor-de-mofo
de todas as vezes em que adormeço há um cheiro
de mofo que inunda as narinas do sonho que
recorrentemente me sonha tubos de tinta
apertam-se contorcendo-se sangrando para dentro
da minha boca cada pingo de líquido colorido
que neles houver
_____________em boa verdade não há princípio
nem fim deste sonho apenas o meio apenas
o lento desenrolar de um indeterminado número
de tubos de tinta sendo vazados para dentro
de mim
______e agora que penso nisso apercebo-me
que neste sonho nem sequer há adormecer ou
acordar apenas tubos de tinta sendo continua–
–mente vazados para dentro de mim
____________________________ao menos
agora sei ao que sabe o arco-íris e também
ao que cheira
______________________________a mofo
Engavetado em
Alexandre Homem Dual,
Op. "nova alexandria",
Poesia
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