27 maio, 2010

Uma Crítica do Plágio

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Luíz de Camões


Ódio é água que molha sem molhar
é cegueira que enxerga mas não se vê
é uma felicidade de um infeliz porquê
é prazer em dor por não poder amar

É um querer muito o que não se quer
é ficar só por não ganhar o coração
é negar o bater sentido do querer
é ganhar nada por perder a razão

É desejar um desejo indesejado
é servir um prato frio de sal e sódio
é ser odioso por não ter amado

Mas como pode causar lugar no pódio
de um fado tão triste e malfadado
se tão semelhante a si é esse ódio?

JSL



O texto seguinte foi redigido a pedido de JSL que me contactou para que eu lhe desse a minha opinião. Foi uma pequena provocação que me deu algum gozo, uma vez que isto é algo que me está gravado no ADN, desde que li o meu primeiro livro, 2 páginas por noite, a dura capa vermelha e roxa já não sei quantos meses guardada debaixo da almofada. Tinha 8 anos e o livro chamava-se Spartacus, de Howard Fast. Ainda o tenho, a lombada já comida pelos ratos. Mas ainda o tenho...



Artigo 196.º (LEI 16/2008 de 1/4 que estabelece o Código do Direito de Autor e Direitos Conexos)

Contrafacção

1 — Comete o crime de contrafacção quem utilizar, como sendo criação ou prestação sua, obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão de radiodifusão que seja mera reprodução total ou parcial de obra ou prestação alheia, divulgada ou não divulgada, ou por tal modo semelhante que não tenha individualidade própria.

Não considero o poema “Ódio é água que molha sem molhar” um plágio ao soneto de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver” pela muito simples razão de: a) não haver uma cópia do texto ipsis verbis; b) nem existir uma alteração por tal modo pequena que não confira ao “poema inspirado” uma individualidade própria e autónoma do “poema inspirador”. Como exemplo da última hipótese, dou o caso de alguém que pegando no soneto camoniano, se limitasse a substituir palavras ou grupos de palavras por respectivos sinónimos. Eu próprio me encarrego do exercício:


“Amor é lume que flameja invisível

é golpe que dói sem ser sentido;

é uma felicidade desgostosa,

é mágoa que faz perder o tino sem magoar.”


Ora, pegando no que diz a Lei acerca da contrafacção (“comete o crime de contrafacção quem utilizar, como sendo criação (…) sua, obra (…) que seja mera reprodução total ou parcial de obra (…) alheia, (…) ou por tal modo semelhante que não tenha individualidade própria”), pergunto eu: onde reside no “poema inspirado” a individualidade própria necessária para que possa ser considerado uma obra original se este repete a estrutura e o tema do “poema inspirador”? Nota: quanto ao tema, se o “poeta inspirado” se limita a trocar sinónimos, parece-me óbvio que o tema não poderá ser diferente do tema original cuja autoria é do “poeta inspirador”. A questão é que a utilização da sinonímia pode ser entendida como uma tentativa de encobrimento do texto original, através da usurpação de uma estrutura e de uma temática já existentes. Ora no caso de uma homenagem ou de uma sátira (que não deixa de ser uma forma de homenagem ao original), o que acontece é precisamente o contrário: através do recurso a antónimos, o “poeta inspirado” remete o leitor para o texto original, não o escondendo, antes publicitando-o. E assim se desencadeia um processo de intertextualidade. Mas, num caso limite (sendo esta a última fronteira aceitável entre a originalidade e o plágio, no meu modesto entender – entender esse que se baseia não só em factores éticos e morais mas principalmente no espírito da Lei), é possível que não se recorra à antonímia, mas à cópia integral de versos sem que isso seja plágio. Suponhamos que o poeta inspirado copiava o soneto na íntegra alterando-lhe porém, por exemplo, os últimos versos de cada quadra ou, outro exemplo, escrevendo-lhe um terceto final diferente. Certamente (desde que não recorresse à figura da sinonímia) o tema do poema seria mudado, o que lhe daria a tal “individualidade própria” ainda que partindo, e copiando mesmo alguns versos, de soneto sobejamente conhecido. E acima de tudo, o importante (digo eu…) é nunca esquecer de mencionar a fonte, quer seja através de uma referência directa (no caso de obras menos conhecidas) quer seja através de referências indirectas, inerentes à própria obra “inspiradora” (no caso das obras mais conhecidas)…


P.S.: JSL teve a amabilidade de colocar o feed da minha participação no Fórum de Poesia Luso-Poemas e o feed deste mesmo blog, o Amendual, no site de poesia do bloktok; um muito obrigado.

P.P.S.: ao José S. Lourenço um grande abraço.