29 agosto, 2010

Natureza Morta: peça de caça e amêijoas numa caçarola


as pálpebras batem palmas tão rapidamente
assemelhando-se a amêijoas que se abrem
quando aquecidas ao calor da música de alhos
a fritar no azeite
____________.ah o aroma dos coentros
como um trio de cordas no pássaro bambo

24 agosto, 2010

S/título


Arrancados do corpo os espinhos, as feridas servirão

Agora para dar de beber aos habitantes do deserto.

O sangue que lhe corre pelo corpo – esse mesmo corpo,

O corpo do poema – escorre para a boca dos famélicos.

E dos que dançam a chuva para matar a sede. Arrancadas

As almas polissémicas às palavras – essas mesmas palavras,

As palavras que não são do poema – o que resta para lá do corpo

Despido e cru, ungido e nu, que um dia nos foi pão

Mas hoje nada mais que memória?

Como uma mortalha envolta em redor do coração...

06 agosto, 2010

S/título


no lânguido arrastar das cordas dos violinos
ouço o cheiro do sangue maré vermelha
de sons chegando à praia prometida
ouço Adão correndo nu tentando fugir
às ondas ouço o vento levando até si
a voz de Eva cantando a música
das vagas a música do tempo o gemido
não experimentado
_________________partem-se as cordas
e reina o silêncio mas o sangue não cessa
hímen perfurado pelo mergulho de pecador
nas macias águas do Momento

04 agosto, 2010

A Besta e a sua Cadela


Ei-la! A Besta! A arauta do Incesto!

Vejam: dois campanários do desnudo

Peito se lhe erguem, do peito peludo…

Tocam sinos de badalar funesto.


Rasga-lhe a pele e a carne a satânica

Igreja que das vísceras nasceu,

E ergue-se do seu berço-mausoléu

Como arquitectura biomecânica…


E, nascido o santuário profano,

Os seus pórticos abrem-se de par

Em par, do interior vindo susano


Ser, licantrôpega deidade e bela,

Que humana mulher vem a procurar,

A quem possa fazer sua cadela…

Dom Sebastião


Por entre o nevoeiro do amanhã
Nascido de uma manhã de nevoeiro, a névoa
Deixou as suas pisadas na neve que cobria
O pathos de uma tragédia grega
Ensaiada no deserto.
E é quando a selenita placenta de uma nação inteira
Se desagrega
Do útero matriarcal
Que os atiçadores de palavras e os escrevinhadores de incêndios
Se apercebem que é
A violência o último Dom Sebastião dos fracos…

Quando tatuaremos a Mensagem na Carne como quem marca o gado?
Quando tragaremos novamente o Mar como quem bebe sangue?
Quando carpiremos o Céu com lágrimas de fado?
Quando conquistaremos o Passado que nos fita Adiante?...