25 dezembro, 2010

Paisagem: o Largo do Carmo na madrugada do 25/12/2010


Vinte e cinco de Dezembro são três
E meia da madrugada. O Céu
Chora a cântaros sobre o meu chapéu-
-de-chuva novo comprado este mês.

Lá estou eu, no meio de um temporal,
Defronte da Igreja do Carmo parado
Um sapato seco, o outro encharcado.
Busco o Menino mas d'Esse nem sinal!

Porém distingo, num beco, um casal:
Foge da trémula luz de um lampião
E beija-se, ébrio, na escuridão.

E por entre os campanários da igreja
O vento, assobiando a quem se beija,
Anuncia, fremente, que é Natal!

21 dezembro, 2010

Paisagem: do outro lado da rua

Um cão guarda a esquina: o pêlo molhado
pinga gotas do céu para o chão.
Contempla a chuva olhando em frente
onde o prende no horizonte uma trela de solidão.
Um gato atravessa a rua numa passadeira
onde é cumprimentado por um peão.
Um carro não pára e quase atropela o gato
e a pessoa já do outro lado do tabuleiro chama o condutor de cabrão.
O gato foge não sei para onde
nem de quem nem como nem porquê.
A chuva cessa.
Um cão aguarda à esquina. Não sei, nem ele, é do quê.


14 dezembro, 2010

07 dezembro, 2010

A minha tradução de Annabel Lee

Na senda da minha tradução do poema "The Raven", de Edgar Allan Poe, deixo a tradução de outro poema do autor norte-americano, "Annabel Lee". Também este texto foi traduzido para português, à semelhança d'"O Corvo", por Fernando Pessoa. Aqui fica a tradução do poeta dos heterónimos. A minha está na página das traduções, ou seja, aqui.

01 dezembro, 2010

A minha tradução de O Corvo

Tenho o prazer de apresentar "O Corvo", a minha própria tradução para português do poema "The Raven", de Edgar Allan Poe (1809-1849).
Outras versões existem em língua portuguesa, sendo as mais conhecidas (para mim, pelo menos) as de Fernando Pessoa e de Machado de Assis - e cujos textos podem ser consultados aqui e aqui, respectivamente. Todavia, qualquer tradução não dispensa, sempre que possível, a leitura do original - que pode ser encontrado aqui. Boas leituras!

22 outubro, 2010

Até breve!

Se eu tivesse uma página no facebook, o tópico do dia de hoje (e dos próximos) bem poderia ser:

Valter Ego vai abrir uma garrafa de bom vinho e dedicar-se/deliciar-se com o acontecimento do ano: a disponibilização on line de quase toda a biblioteca de Fernando Pessoa, com acesso às páginas digitalizadas e devidamente anotadas, comentadas, algumas até traduzidas pela mão do próprio Pessoa.
Até um dia destes!

12 outubro, 2010

S/título


Há sangue nas minhas mãos e no meu rosto.

E dedadas impressas a sangue gravadas no interior

Das tuas pernas. E do teu ventre. E os meus dentes

Estão pintados de vermelho, e entre os meus dentes,

Pequenos pedacinhos de carne dependuram-se,

Ainda vivos, como demónios balouçando-se nas estrelas.

E também os teus mamilos sangram, ainda que leite,

E ainda que esse leite seja azedo, alimenta a aridez da terra inóspita.

Há sangue pingando do meu sexo, e pinga para dentro da tua boca

E para cima dos teus cabelos. E o verde aroma a frescos prados

Longínquos que exalava do teu cabelo confunde-se já

Com o cheiro do sangue seco e próximo.

À medida que as horas passam e o silêncio se instala – já

Não há o som ritmado de falos a pingar – parecem os teus olhos sem vida

Seguir-me e a tua boca cheia de sangue querer gritar-me:

É teu, assassino, o rosto da mênstruosidade!

11 outubro, 2010

Paisagem: um oásis no deserto


Todas as portas do país se fecharam naquele dia
- e todas as bocas, só os olhos se mantiveram muito abertos,
em assombro, espreitando pelos postigos das janelas.
As palavras foram atiradas para o fundo de um poço,
talvez a toca do coelho por onde Alice outrora caíra,
e ninguém ousou libertar um grito de revolta.
Os livros começaram por sangrar lentamente até que
perderam toda a tinta, e as páginas ficaram desertas,
tão desertas como as ruas daquele país naquele dia.
Mais tarde, lembrei-me (pouco mais velho seria que a própria Alice)
de espreitar para dentro de um livro e ver como seria.
Então escrevi num papel branco as letras l i v r o
e demoradamente analisei o conjunto formado.
Concluí que só poderia espreitar através do buraquinho
formado pela última letra - nenhuma outra se apresentava
tão consentânea com este meu ambicioso mas pueril projecto.
Aproximei, devagar, o meu rosto ao papel, fechei um olho,
e encostei o outro à última letra. O que vi foi tão marcante
que, a partir desse dia, todas as noites descia, sorrateiramente,
até ao fundo do poço e resgatava, um por um, todos os livros
quantos consegui. E, como que por magia, perante os meus olhos
e as minhas madrugadas, todas as letras ressuscitaram...
Hoje, o meu país já tem livros outra vez,
mas não digam a ninguém: é segredo...

04 outubro, 2010

Retrato: um querubim chorando a divina comédia


Chora um anjo lágrimas de acrílico

Borrando a tela que lhe dá vida.

Como pode tal dor ser inflingida

A um anjinho belo e idílico?


Até suas asas tem recolhidas

– Elas que preencheriam o céu

Se da tela se rasgasse o véu –

Lacrimejantes e entristecidas.


Como te criou assim um pintor?

Que deus te deu a vida sem amor?

Calo-me pois fala o querubim:


– Não é por dor que choro ou tristeza

Que me aflige; é pela negra certeza

De não haver Céu acima de mim…

20 setembro, 2010

Natureza Morta: uma malga de sopas de cavalo cansado


Os cavalos estão cansados, chicoteados que são
Pelas pestanas sonolentas das crianças
E pelos seus lábios ávidos de vida.
Os cavalos estão mortos, triturados que foram
Os seus ossos e a sua carne nos estômagos
Das crianças ávidas de morte.
Os cavalinhos ainda estão por nascer, sussurra-me
Uma pueril orquestra de vozes, em uníssono
Com o roncar maquinal das suas barrigas a dar horas...

15 setembro, 2010

(Resposta)


A Mário Cesariny:

Os poetas são criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo-cosida, tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa hipocrisia,
lágrimas cem por cento sinceras.


Nota: o texto em itálico foi retirado, ipsis verbis, do poema "Louvor e Simplificação de Álvaro de Campo", de Mário Cesariny.

10 setembro, 2010

Allegro appassionato: o cheiro que se lavra entre as minhas coxas


Abre bem as tuas narinas,
de virilha a virilha, de nádega a nádega,
e cheira bem - ou melhor ainda -
o cheiro que se lavra entre as minhas coxas,
de nádega a nádega, de virilha a virilha -
poema escrito por mamilos como dedos
sôfregos e trôpegos
encharcando de suor e de tinta a folha branca.

À noite, todos os gatos são leopardos, escrevi.

Sou ínsulo e em meu redor inunda-me
e ressaca-me só o sensualismo de ti.

06 setembro, 2010

Trompe-l'oeil: a perspectiva do tempo


ao som de pianos
as duas faces de Janus
choram por mil anos
____....por mil cilícios
____.e por outros tantos suplícios

02 setembro, 2010

lava


meu sangue é lava e é com o
meu sangue que ela lava
as suas coxas e os seus pés
os tornozelos e a barriga das pernas
os sovacos os braços e as mãos
é com o meu sangue que ela se queima
e se marca de mim
é com o meu sangue que ela crava
na carne a marca da aliança que nos une
e quando o meu sangue coagular
quando se tornar pedra sólida depois
de ter sido pedra líquida torrente
de lava correndo e queimando os rios
abertos pelo corpo adentro e pela alma
afora quando o meu sangue coagular
dizia eu ela comê-lo-á à dentada
e fará a digestão de mim e parte de mim
será absorvida pelo seu organismo e outra
parte de mim será evacuada e fecundará
a terra como estrume
____________como sémen
_________________como merda
mas uma coisa há que dela nunca será expulsa
o sólido sabor do meu sangue quente
na sua boca é com essa memória que ela
todas as noites ao acordar
e todas as manhãs ao adormecer
lava os dentes

29 agosto, 2010

Natureza Morta: peça de caça e amêijoas numa caçarola


as pálpebras batem palmas tão rapidamente
assemelhando-se a amêijoas que se abrem
quando aquecidas ao calor da música de alhos
a fritar no azeite
____________.ah o aroma dos coentros
como um trio de cordas no pássaro bambo

24 agosto, 2010

S/título


Arrancados do corpo os espinhos, as feridas servirão

Agora para dar de beber aos habitantes do deserto.

O sangue que lhe corre pelo corpo – esse mesmo corpo,

O corpo do poema – escorre para a boca dos famélicos.

E dos que dançam a chuva para matar a sede. Arrancadas

As almas polissémicas às palavras – essas mesmas palavras,

As palavras que não são do poema – o que resta para lá do corpo

Despido e cru, ungido e nu, que um dia nos foi pão

Mas hoje nada mais que memória?

Como uma mortalha envolta em redor do coração...

06 agosto, 2010

S/título


no lânguido arrastar das cordas dos violinos
ouço o cheiro do sangue maré vermelha
de sons chegando à praia prometida
ouço Adão correndo nu tentando fugir
às ondas ouço o vento levando até si
a voz de Eva cantando a música
das vagas a música do tempo o gemido
não experimentado
_________________partem-se as cordas
e reina o silêncio mas o sangue não cessa
hímen perfurado pelo mergulho de pecador
nas macias águas do Momento

04 agosto, 2010

A Besta e a sua Cadela


Ei-la! A Besta! A arauta do Incesto!

Vejam: dois campanários do desnudo

Peito se lhe erguem, do peito peludo…

Tocam sinos de badalar funesto.


Rasga-lhe a pele e a carne a satânica

Igreja que das vísceras nasceu,

E ergue-se do seu berço-mausoléu

Como arquitectura biomecânica…


E, nascido o santuário profano,

Os seus pórticos abrem-se de par

Em par, do interior vindo susano


Ser, licantrôpega deidade e bela,

Que humana mulher vem a procurar,

A quem possa fazer sua cadela…

Dom Sebastião


Por entre o nevoeiro do amanhã
Nascido de uma manhã de nevoeiro, a névoa
Deixou as suas pisadas na neve que cobria
O pathos de uma tragédia grega
Ensaiada no deserto.
E é quando a selenita placenta de uma nação inteira
Se desagrega
Do útero matriarcal
Que os atiçadores de palavras e os escrevinhadores de incêndios
Se apercebem que é
A violência o último Dom Sebastião dos fracos…

Quando tatuaremos a Mensagem na Carne como quem marca o gado?
Quando tragaremos novamente o Mar como quem bebe sangue?
Quando carpiremos o Céu com lágrimas de fado?
Quando conquistaremos o Passado que nos fita Adiante?...

21 julho, 2010

Retrato de Um Sonho



Sonho-nos viajando pelo tempo no deserto

Montados em camelos e em dragões e em serpentes.

Sonho nus os nossos corpos jovens no leito do rio

Banhando-se nas escamas áridas das noites de verão.



E banqueteio-me das tuas pegadas – recordas-te,

Do dia em que as gravaste no céu, ao caminhares rio acima?



Hoje quero-me dançar-te, valsando pelas sombras de ti,

De ti que me atravessaste o peito

De bolas de pêlo e de balas de prata

Enquanto me sussurravas:

“São os sonhos caninos como lobos pequeninos, dentinhos

Como agulhas que ardem como faúlhas ao cravar a carne”…



Como-os eu enquanto os reúnes em rebanhos tu, Úrsula –

Aos sonhos.

14 julho, 2010

Paisagem: República Canibal de Alexandria

Hoje quero soprar para longe de mim as canseiras

Que me tornam o corpo pesado e lasso, que me sujam

Os cabelos na lama e mos enrolam à volta dos braços

Como pulseiras. Nunca me pensei cativo do meu próprio

Corpo nem cárcere dos meus versos. Quero cantar o verão

Que morreu em mim, no interior do peito que já murchou.

Contar, pétala a pétala, as flores do mal que Baudelaire

Plantou no seu jardim. Quisera eu enrolar-me em tempos

No corpo do Diabo e enamorar-me dos poetas malditos,

E rebolar-me na sua tinta como uma virgem promíscua

E voraz que saltita de cama em cama, não sabendo

Muito bem o que procurar – se é que demanda

Algo mais que o mero prazer da descoberta morfo-carnal.

Aqui proclamo a República Canibal de Alexandria!

Soltem todos os gatos pretos à rua e deixem-nos procriar

Sob o tecto estrelado que Dalí poderia ter pintado – ou

Cozinhado como um ovo.

Soltem todas as serpentes e enviem-nas, na vez

Dos pombos-correio, entregar as boas-novas a todos

Os habitantes do Éden.

Soltem todos os corvos e façam-nos pintar o céu

Com a cor dos seus bandos.

Soltem todos os poetas, decreto eu!

E não se esqueçam de me deixar os portões do inferno bem abertos

(sim, sim, bem abertos como diabólicas mandíbulas

Emoldurando uma bonita e rapada vulva – dentro da qual

Se vislumbra o focinho de um torpe e peludo lobisomem),

Porque eu também descer pelo teu corpo abaixo – e adentro,

Bem adentro… – e brincar com os gatos que se escondem

Nas sombras dos teus recantos, e com as serpentes que dormem

Enroladas nos caracóis dos teus cabelos, e com os corvos que te voam

Pela tua negra alma afora, e com os poetas que tu assassinaste

– atravessando-lhes a alma com a ponta metálica e da tua pretoriana língua…

Anda, dá-me a mão e eu levo-te pelos círculos do inferno.

Dá-me o coração e eu espremo-te as vinhas da minha poesia

Para dentro da tua boca. Em troca, só te peço que me oiças,,

Oh Psicópatra:

Dá-me Roma inteira incendiada

Ou não me dês absolutamente nada!

10 julho, 2010

Homem-Deus-Campeão


Engole o asfalto a voraz serpente...
Cada escama um jersey, uma cor...
Homem-máquina em perfeito labor:
Pé e pedal, coração e corrente!

Embala o tempo, deixando-o dormente,
Seduz a estrada, fingindo-a sem dor,
Crava-lhe as presas, num beijo de amor,
Num abraço que nem o tempo sente...

Mil olhos de sangue fitam a meta,
Pedalam como não haja amanhã...
A eterna glória ao fim da recta!

Os sprinters encabeçam o pelotão
Como dedos de fogo de um titã...
Eis que surge o homem-deus-campeão!

26 junho, 2010

S/título


Há quem queira esculpir rios no lugar
de onde a boca se abre para o mar, como
se em substituição da voz houvesse uma foz
feita de líquidos seminais e vaginais e de outros
líquidos feitos de maviosidades e de outros ais...
E aos que choram lágrimas de sangue
ofereço a vã hecatombe do meu corpo
e as concavidades da minha alma panda,
para que as encham dos seus olhares
vertidos nas sílabas, vestidos de acentos,
despidos pelos gemidos das palavras...

Cá eu só quero abrir a boca e tragar-te o oceano,
trazer-te o céu ao toque do teu corpo mundano...

02 junho, 2010

Baphomet e as Virgens Gárgulas


Eu, Baphomet, às amaldiçoadas

Virgens de três mamilos ou de um seio,

Venho-me informar-vos, por este meio:

Por homem nenhum podeis ser tocadas!


Estátuas sereis p’la eternidade

E vossas coxas conservar-se-ão juntas,

As vulvas fechadas às marabuntas

Do sibarismo e da sensualidade.


Mas os arautos da podridão, larvas

De corpo invertebrado como um falo,

Jogam-se a elas, às cegas, às parvas.


Os vermes agarram-se às fêmeas gárgulas

E lá sucumbem, de tanto gritá-lo:

“Magistrado Baphomet, tens que dar-no-las!”

29 maio, 2010

Svalbard

Svalbard,
Deixa-me provar o teu pão
Se algum dia o Homem me der fome com uma mão
E de escuridão me cobrir com a outra!...

Contador de Estrelas


Lá vai ele pela estrada,
De mão dada ao acaso:
Conta pedras na calçada
Como quem conta estrelas...
Até há-de adormecê-las
De tanto andar descalço,
Correndo o mundo sozinho,
Buscando a terra sonhada.
E um dia há-de chegar
Ao final do universo
Mas quando lá chegar
Há-de fazer o caminho
Inverso.

27 maio, 2010

Uma Crítica do Plágio

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Luíz de Camões


Ódio é água que molha sem molhar
é cegueira que enxerga mas não se vê
é uma felicidade de um infeliz porquê
é prazer em dor por não poder amar

É um querer muito o que não se quer
é ficar só por não ganhar o coração
é negar o bater sentido do querer
é ganhar nada por perder a razão

É desejar um desejo indesejado
é servir um prato frio de sal e sódio
é ser odioso por não ter amado

Mas como pode causar lugar no pódio
de um fado tão triste e malfadado
se tão semelhante a si é esse ódio?

JSL



O texto seguinte foi redigido a pedido de JSL que me contactou para que eu lhe desse a minha opinião. Foi uma pequena provocação que me deu algum gozo, uma vez que isto é algo que me está gravado no ADN, desde que li o meu primeiro livro, 2 páginas por noite, a dura capa vermelha e roxa já não sei quantos meses guardada debaixo da almofada. Tinha 8 anos e o livro chamava-se Spartacus, de Howard Fast. Ainda o tenho, a lombada já comida pelos ratos. Mas ainda o tenho...



Artigo 196.º (LEI 16/2008 de 1/4 que estabelece o Código do Direito de Autor e Direitos Conexos)

Contrafacção

1 — Comete o crime de contrafacção quem utilizar, como sendo criação ou prestação sua, obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão de radiodifusão que seja mera reprodução total ou parcial de obra ou prestação alheia, divulgada ou não divulgada, ou por tal modo semelhante que não tenha individualidade própria.

Não considero o poema “Ódio é água que molha sem molhar” um plágio ao soneto de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver” pela muito simples razão de: a) não haver uma cópia do texto ipsis verbis; b) nem existir uma alteração por tal modo pequena que não confira ao “poema inspirado” uma individualidade própria e autónoma do “poema inspirador”. Como exemplo da última hipótese, dou o caso de alguém que pegando no soneto camoniano, se limitasse a substituir palavras ou grupos de palavras por respectivos sinónimos. Eu próprio me encarrego do exercício:


“Amor é lume que flameja invisível

é golpe que dói sem ser sentido;

é uma felicidade desgostosa,

é mágoa que faz perder o tino sem magoar.”


Ora, pegando no que diz a Lei acerca da contrafacção (“comete o crime de contrafacção quem utilizar, como sendo criação (…) sua, obra (…) que seja mera reprodução total ou parcial de obra (…) alheia, (…) ou por tal modo semelhante que não tenha individualidade própria”), pergunto eu: onde reside no “poema inspirado” a individualidade própria necessária para que possa ser considerado uma obra original se este repete a estrutura e o tema do “poema inspirador”? Nota: quanto ao tema, se o “poeta inspirado” se limita a trocar sinónimos, parece-me óbvio que o tema não poderá ser diferente do tema original cuja autoria é do “poeta inspirador”. A questão é que a utilização da sinonímia pode ser entendida como uma tentativa de encobrimento do texto original, através da usurpação de uma estrutura e de uma temática já existentes. Ora no caso de uma homenagem ou de uma sátira (que não deixa de ser uma forma de homenagem ao original), o que acontece é precisamente o contrário: através do recurso a antónimos, o “poeta inspirado” remete o leitor para o texto original, não o escondendo, antes publicitando-o. E assim se desencadeia um processo de intertextualidade. Mas, num caso limite (sendo esta a última fronteira aceitável entre a originalidade e o plágio, no meu modesto entender – entender esse que se baseia não só em factores éticos e morais mas principalmente no espírito da Lei), é possível que não se recorra à antonímia, mas à cópia integral de versos sem que isso seja plágio. Suponhamos que o poeta inspirado copiava o soneto na íntegra alterando-lhe porém, por exemplo, os últimos versos de cada quadra ou, outro exemplo, escrevendo-lhe um terceto final diferente. Certamente (desde que não recorresse à figura da sinonímia) o tema do poema seria mudado, o que lhe daria a tal “individualidade própria” ainda que partindo, e copiando mesmo alguns versos, de soneto sobejamente conhecido. E acima de tudo, o importante (digo eu…) é nunca esquecer de mencionar a fonte, quer seja através de uma referência directa (no caso de obras menos conhecidas) quer seja através de referências indirectas, inerentes à própria obra “inspiradora” (no caso das obras mais conhecidas)…


P.S.: JSL teve a amabilidade de colocar o feed da minha participação no Fórum de Poesia Luso-Poemas e o feed deste mesmo blog, o Amendual, no site de poesia do bloktok; um muito obrigado.

P.P.S.: ao José S. Lourenço um grande abraço.

17 maio, 2010

Pelagus (ponto final)


Some-se
Um epiciclo.
Aperte-se-lhe
O laço.
Ptolomize-se
O conhecimento
Vago
Errado.

10 maio, 2010

Platão


O padre tomou, com ambas as mãos, uma taça de vinho e despejou-o, reverencialmente, sobre a testa da beata que sentiu o sangue, ainda cálido, de Cristo, percorrendo-lhe o corpo, escorrendo-lhe, escarlate, pela
testa
face
em redor da boca
queixo
pescoço
ombros
seios
ventre
púbis
coxas
joelhos
calcanhares
entre os dedos dos pés.
Após esta via-sacra, o sacerdote lambeu e chupou o dedo grande do pé esquerdo da beata, sem nunca, padre ou vinho, em momento algum, lhe tocar nos lábios...

03 maio, 2010

Natureza Morta: uma colheita de horrores macabros


Recortando o horizonte carmesim
Um campo de espantalhos semeado
Insinua-se ao olhar esfaimado
Que se esconde dentro de um carrocim

Atravessando os Cárpatos Montes
Em passo estugado. Mas ao chegar
Junto às figuras, já sob o luar,
Descobre não espantalhos mas frontes...

No meio de um campo de decepadas
Cabeças, pingando sangue, empaladas
Se quedou a dama elizabetina,

Sob um céu de estrelas luciferinas
Alumiando, como candelabros,
Uma colheita de horrores macabros...

02 maio, 2010

Sandálias & Didascálias


Lá estava eu, num dia invernoso,
Bebericando um livro de esplanada,
Quando a distingui, descendo a calçada
Em ritmo deveras delicioso...

Ei-la: os seios meio descobertos,
Saltitões sob a blusa transparente,
E a pele coxal que só de olhar se sente -
As sandálias cobrindo os pés despertos...

Sentou-se, divina, na mesa ao lado,
Como se fosse fruto temporão,
E pediu, em pleno inverno, um gelado!

Hoje, melhor me lembro das sandálias.
Tudo o resto esqueci pois são,
Mais do que provocações, didascálias...

27 abril, 2010

S/título


E na dança arbórea

Do corpo maduro

E gasto,

Vieram-se a saber

Os dedos que rebolaram,

Vento seco,

No verde pasto...

20 abril, 2010

Tríptico Sangue Tipo O negativo

Beijos Sanguinolentos


Há não muito tempo mas assaz distante:

Num invernal dia chuvoso e trovejante,

Tanta dor havia que dentro dela estava contida…

Tanta dor que não podia ser escondida.

Mas a pobre nem por socorro gritou –

E, silente assassina, a si própria matou.

Ciente da impossibilidade da redenção, tanto da Vida como do Amor,

A ambos arrastou para a cova, no seu último estertor.


Foi desfeito o par de almas suas (há uma só agora onde antes havia duas),

Dividido por este muro de morte inclemente –

Mas, querida, ele juntar-se -á a ti, brevemente…

Trilhando os caminhos do seu sangue o teu amor ele há-de encontrar,

Assim como tu encontraste a força para com a miserável vida acabar.

E tal como tu o fizeste, assim haverá ele de se matar.


Para o sono eterno ele é embalado num cálido e fundo poço avermelhado

Enquanto a sua mão na tua se enterra – e ouve, querida, o que ele, corajoso, te grita:

“Leva-me desta terra e marca, com o fim desta noite – desta noite –, o fim da vida.

Quero sentir os lábios que, sombrios, governam o Reino do Obscurecimento –

E saborear o teu beijo sanguinolento-lento-lento-lentamente…

…morrendo.”




Preto nº 1


Ela gosta de ficar sozinha,

No escuro, deitada,

Onde por si mesma se apaixonou

E a si própria se satisfaz,

Enquanto tenta, em vão, morder,

O pescoço de cor branca aleitada

Onde tem gravada a Marca de Satanás…


É uma Eva vazia de coordenadas celestiais,

Prenhe de sombras incandescentes, que

Durante o plenilúnio de Outubro, nos dará um

– Um só! – dócil beijo ou

Seiscentas e sessenta e seis travessuras dolentes?


Uma coisa é certa:

Ela

Falo

Ah…


Todos os dias se encontra com Nosferatu à meia-noite

E o Príncipe das Trevas sabe (é um facto)

Que ela o castigará com um beijo numa

Face e numa nádega com um açoite…


E ela ri-se e ri-se e ri-se quando lhe chamo mazinha…

Ri-se com aquele seu risinho de bruxinha…


Mas ela quer de si própria sair

Porque o vento na cara lhe chuvisca

Mas dela ela não se pode despir

Porque a si mesma está enraizada

E as raízes estão à vista…


Disfarça-as, corta-as, arranca-as e queima-as

Ou perfuma-as de Preto Nº 1…


Traja nada mais que umas botinas de pele de chacal

E colada ao corpo uma justa gabardine

– E um cigarro (cheira a cravo-da-índia) por acender na boca…

Lá vai despida para um funeral

Porno-erótico, nos seus trejeitos de louca,

Desejando-nos um Feliz Halloween.

O perfume dela tem o odor de outonais folhas caídas e queimadas

(Já acendeu o cigarro e já o bafora);

Lá vai o lindo e maravilhoso monstro e não há quem a abomine…

Para ela, todos os dias são Halloween…


Enterrarmo-nos naquela criatura

É como desenterrar um cadáver de uma sepultura

Funda, fria e escura…




Mulher Cristã


Perdoai-a, Pai,

Pois ela não sabe

O que faz…


Uma cruz mal pendurada, prestes a cair,

Na parede de cabeceira do seu quarto

Prenuncia a queda que da graça ela dará.

Enquanto uma efígie lhe arde na mente

E escorre, lava liquescente,

Por entre as coxas…

E ela questiona à figura do homem santo na cruz pregado,

O homem que se prestou a beber o vinho e a comer o pão

E a digerir toda as dores do homem seu irmão

E a defecar a Salvação (um cagalhão do tamanho do mundo),

Homem santo supra-sumo da sordidez,

Quase nu, ensanguentado, pornograficamente violentado,

Um exânime Deus, já moribundo:

“Quanto (te) virás Tu outra vez?”


E eu te respondo, mulher:


“Perante o teu Mestre, deverás implorar para O servir ou para O agradar

A ele, O do corpo marcado de ferimentos, em vivo sangue,

Ainda vermelhos,

Seja subjugada de costas no chão, seja no chão curvada

De joelhos…


Os teus pecados vão para além de qualquer absolvição

Mas talvez tu mesma prefiras a Punição?...


Acreditarás tu o suficiente para te sacrificares ao sofrimento

Eternamente – na fé, na alma, na mente?

Acreditarás tu o suficiente para te sacrificares ao sofrimento

Internamente – nos ossos, no sangue, no ventre?”


Arderá no inferno a sua alma sibarita:

Primeiro cozida ao de leve, depois bem frita…

E durante a missa, ela toca-se com uma mão

(A outra no pescoço agarra uma cruz)

Escrevendo no clítoris, com o dedo indicador

As letras que formam o nome do seu salvador:

J-E-S-U-S


Ela precisa sentir ressoar o evangelho de Jesus

Cristo profundamente dentro dela.


Jesus Cristo, eutícomo, é como eu:

Cabelo comprido e barba por fazer…

Jesus Cristo, anárquico, é ateu:

Versos despidos e uma religião por foder…




* Pequena brincadeira relativa ao IV Desafio do DRACULEA Café Poesia - uma forma de homenagem a Peter Steele, defunto vocalista de Type O'Negative, cujas letras das músicas "Bloody kisses", "Black nº 1" e "Christian Woman" me inspiraram para a respectiva tradução e subsequente composição deste tríptico.

13 abril, 2010

Inda He Inda He Indahehe


Os galhos dos salgueiros esticam os dedos na direcç
ão da praia

Onde dança a tua voz, confundindo-se com o som das ondas

E com o sabor da maresia; os salgueiros estão lá no morro de onde

Te espreito: descalça pisando as areias quentes sob os teus pés

– nua nadando por entre um mar de mescalina. Lá onde eu morro

Já antes de mim morreram outros, mil outros mais, diabos e anjos

Cujas ossadas foram já desfeitas pelo lento languidescer dos séculos

E pelo peso do teu corpo e da tua voz. Faço-te adeus, apesar de me

Não veres – aqui invisível aos teus olhos me prostro a morrer, acenando

O sol que se deita para lá do horizonte na tua cama. E os gemidos

Delicados das ondas que beijam a praia levantam das suas sepulturas

Os espíritos de todos aqueles outros que morreram já antes de mim:

Uma tribo de índios, uns velhos e outros novos, estes de peito duro

E castanho queimado pelo sol que reina alto, aqueles de peito mole

E castanho queimado pelas fogueiras à beira das quais se habituaram

A dançar. E dançando e cantando para lá da morte continuam:

Inda he inda he inda he indahehe! Inda he inda he inda he indahehe!

Ainda te ouço mas já te não vejo; o cântico dos índios ecoa pela tua garganta

– ou a tua presença pela garganta deles, quem sabe? Eu só sei que hoje é

Uma boa noite para morrer: por isso dançarei na companhia dos índios,

Promíscuos, felizes, ao som da tua cantiga de embalar.

E quando me deitar, tal como o sol se deita para lá do horizonte na tua cama,

Esticarei os meus dedos uma última vez e colherei um punhado

De folhas de um salgueiro dobrado pelo teu sopro (sim, eu sei que me esperas lá

Na linha do horizonte); e espalhá-las-ei, jogando-as ao ar, sobre o meu corpo

Nu e prenhe de música – e de imortalidade.

09 abril, 2010

Paisagem: uma cidade moderna


O cair da noite tapa a cidade

Com um manto de culpa e remorso,

Gravando-lhe nas costas e no torso

Os castigos pela sua vaidade.


Mas seus mil fortes braços de betão

Suportam a cúpula tenebrosa

Que, bela, se insinua laivosa

E lhe preenche o jovem coração.


De manhã, novo tempo, novo espaço.

A cidade acorda seu corpo lasso

E para mais um dia se prepara.


E é assim com um olhar meio baço

Que a cidade dá seu primeiro passo

Fingindo-se um sorriso na cara.

S/título


As manhãs sempre trazem o sopro de uma nova vida,

Uma vida que vem não substituir e apagar a anterior e todas

As anteriores antes da anterior a ser apagada e substituída, mas

Simplesmente juntar-se, como numa amálgama de vidas

– e de mortes, claro – à complexidade de redes e de signos em que

Se torna a vida – ai a vida, a vida. Talvez fosse mais fácil

Falar de mortes, claro; de mortes e de mortos: os mortos não respondem,

Ainda que lhes falemos na obscuridade da noite ou que deles falemos

Pelas costas. Mas às vezes os mortos respondem, diz-me uma voz soprada

Por uma nova manhã. Às vezes os mortos respondem e riem dos que cá

Ficaram. Cientes de que nunca voltarão. Mas riem em silêncio, [aprendizes

Que são dos magistérios da vida eterna. Os silêncios são de ouro, aprendi

Com uma velha que poderia ter sido minha avó; e os mortos viajam

Depressa e com um sorriso crepuscular nos lábios lívidos.

Ai a vida, a vida… pantanosa, palúdica, a vida…

08 abril, 2010

Shiva


O anjo-da-morte tem olhos de serpente
E são vermelhos.
Shiva.
Tapem todos os espelhos.

Através do vale da morte
Somos conduzidos por entre duas colinas gémeas.

Meus anjos-da-guarda são fêmeas:
Valquírias,
Princesas judias,
Rainhas sírias.

Imperadores Romanos,
Filósofos gregos,
Messias hebraicos,
Profetas cegos,
Parem!
O shiva terminou...

Destapem os espelhos.
Contemplem-se.
Os vossos rostos (e os vossos deuses) estão velhos...

Salém


A noite está envolta em fenómenos,
Sons e luzes que vêem do céu
E vão parar ao centro da cidade.
Bestas enjauladas no subsolo com as suas filhas virgens
Por sua vez encarceradas na sua própria virgindade...
Voam as bruxas nos seus paus-de-vassoura
E reúnem-se à volta do fogo
Para dar início ao discurso de abertura.
À praxe sempre cerimoniosa que antecede um ritual antigo
Antecedem-se 12 badaladas dadas pelo sino da igreja.
Meia-noite na praia.
Os nomes proferidos são indecifráveis
Mas os nomes são para os jazigos.
As bruxas devaneiam pelo cemitério
E as loucas mulheres do sultão correm nuas pelo areal
Fazendo amor como cadelas com o cio.
As ondas quebram-se nas rochas
Sob a luz do luar que encanta as filhas de Vénus.
É convicção de Judas-Mulher que as bruxas
Não passavam de ninfomaníacas
E que foram as cristãs que as condenaram
À fogueira
Por levaram os seus homens para a húmida orla da floresta
Em loucos banquetes, orgias e festas...
E todos viviam felizes no bosque do amor
Até que uma qualquer nosferatu invocou o julgamento de Salém...

Até que uma Nosferatu invocou o julgamento de Salém…


07 abril, 2010

O Fado do Pobre Coitado do Diabo


Acordei e pus-me a beber
Chá de menta com absinto;
P'ra voltar a adormecer
Num poço de vinho tinto.

O poço era muito escuro,
Nem se lhe via o fundo.
Lá morava Satã: duro,
Sisudo, cogitabundo.

Quis que eu, de imediato,
Me tornasse seu vassalo!
Tive que assinar um contrato
Que me força a enrabá-lo!

Sodomizei o Diabo
À frente das nossas mães,
E a seguir lambi o rabo
A uma corja de cães.

Natureza Morta: a maresia numa concha de berbigão


Quando acordo de madrugada
E sinto o corpo do meu amor
Deitado a meu lado
Pela ausência denunciada
Nos lençóis ainda tépidos
Sei que ela se foi mas que voltará...

Se a quisesse procurar, saberia onde encontrá-la:
Sentada à beira d'água, cavalgando
Com os olhos as ondas, penteando os cabelos
Com as conchas dos berbigões que comeu
E que lhe deixaram na língua
O travo do mar...

Mas nunca vou procurá-la, sei que ela
Aqui estará, deitada a meu lado,
De manhã, quando eu acordar...

06 abril, 2010

S/título


Canta, de olhos fechados, com a sua voz de fumo,

O país de sonho que lhe foi sussurrado nos seus sonhos.

Conta, com a sua voz de fumo, de olhos cerrados,

As trágicas maravilhas de um povo que carrega o luto

Nas palavras e nos gestos solenes e gastos, monárquicos

Mesmo no seio da mais baixa ralé republicana;

As maravilhosas tragédias de um povo que, desnudo

Descalço, desdentado, avança para o mar em barcaças

Apenas tão duras quão duros são os calos das mãos

E com velas tão pandas quão pando pode ser

Um mar de negros xailes vogando no horizonte.

Cerradas as pálpebras, persianas das janelas da alma,

Resta imaginar o sonho de um punhado de capitães,

Os tais que desabrochariam em Abril, os tais que sem sangue

Vingariam as costas marcadas pelos chicotes e pelos cigarros dos

Putrefactos, insolentes, desumanos, energúmenos

Verdugos de um fadário que se vestiu a preto e branco.

Inspira, de olhos enclausurados, o último suspiro do adeus ao [passado;

O primeiro florir da manhã que se adivinhava nas cores ainda por [descobrir…





Trabalho plástico de Ursula Mestre a partir de uma fotografia de autor desconhecido,
encontrada aqui.

01 abril, 2010

S/título


Pela porta escancarada para o rosto da noite

Não se vê sombra,

Não se vê luz,

Não se vê nada.

Tudo é escuro e o tudo

Esconde a presença dissimulada

De um odor trazido pela aragem

Gélida e serena…

Odor doce de amêndoas que alivia

A dor ausente que o toque da morte gangrena.

S/título


Olhou-me um rosto outro do outro lado do espelho

Hoje ou amanhã ou ontem, não o sei bem.

Olhou para dentro de mim e olhou em minha volta

Com o estranho estranhamento de quem estranha

A familiaridade da âncora que

Quotidianamente ancora

Alguém à sua hora.

Entrei em pânico e saí de mim mesmo

Pela porta fora.

Sei-me melhor no não ver-me

Do que no olhar-me e desconhecer-me.

Flores Púrpuras


Flores púrpuras desabrocham

No céu cor-de-sangue

À medida que línguas de veludo

Chicoteiam as coxas suadas

E ardentes

De 1000 virgens gemendo inclemência.

E cada gota de saliva derramada

É um mar de sémen e é um mar de prazer

Jorrando das pétalas arrancadas e atiradas ao vento do [infortúnio…

E há uma voz que chora:

Uma mão angelical afaga-nos o cabelo

E toca-nos o sexo em cada momento de desespero…

31 março, 2010

A Noite da Floresta


Licantrópico,

O vento chama

A matilha

Uivando nomes

Que só os seus irmãos de sangue

Poderão compreender…

E na noite da floresta,

Enrodilha-se na lua

Transportando o cheiro do plenilúnio

Até ao nariz da floresta

Onde, antropomórfica,

A besta

Sente os seus pêlos interiores

Eriçando-se

Ao sabor do vento…

Natureza Morta: cadáveres dispostos arbitrariamente numa praia


Cadavéricos corpos à luz

Das estrelas em Faro foram nados

Invadindo as águas costeiras

Que lhes reúnem os ossos quebrados.

Falam na língua que a lua traduz

Em verbos de silêncio preenchidos

E trazem nos olhares as canseiras

De quem tudo sente em todos os sentidos…

30 março, 2010

Pub

HOJE: DRACULEA Café Poesia.

Todas as terças, à noite, no DRACULEA* Café Bar (Rua Dr. Rodrigues Davim, 44, Faro)

*Domus Regia Artis, CULtus Et Amicorum

S/título


A vida, neblina da vicissitude, é uma composição de [contrariedades
Escrita pela mão de uma noite de silêncio inconsolável, inatingível
Como a eternidade do mar... uma pedra na graciosidade do sapato
Que o encanto supremo da saudade nos faz calçar...
E é indelével que dela nos havemos de enamorar...
Mas a morte, como um terrível sintoma de mucosa constipação
Que interrompe a serenidade de um quente e íntimo dia de verão,
Lança-nos violentamente no místico oblívio de um éden [inverniço...

27 março, 2010

Natureza Morta: uma carcaça disposta numa cama de flores


a vida é uma puta pestilenta
coberta de pústulas plenas de pus
e de ironias pusilânimes
uma chaga cheia de chamejantes
infortúnios repleta de bichos
comendo-nos de dentro para fora
rompendo o fino véu do hímen
putaveril de uma vulva inodora

ah que bem cheira a primavera no equinócio de março

26 março, 2010

Sorte Maldita


Maldita sorte esta que me acompanha
Ao pôr em palavras o pensamento.
Nem sequer me vale a rima! Não há alento
Diante de uma incompetência tamanha.

Nem o verso livre me sai bem – bem tento!
Pasmo-me perante a recusa estranha
De reconhecer que não sou um Pessanha
Ou um Cesário, só um poeta sem talento...

Que inveja de vós, tríade magnífica,
E da vossa pena onde pontifica
O verbo e o metro e todo o esplendor

Do Camões, poeta e amante, do fero
Bocage e do filosófico Antero,
Seja em sonetos de morte ou de amor...

Madalena


Pela noite serena caminha Madalena
Com seus pés descalços,
Dançando de estrela em estrela.
A brisa da noite sopra o seu cabelo
Destapando a face que um anjo lhe revela...
Pela noite calma vagueia a sua alma
– Pálido reflexo da sua ígnea beleza
Fugindo e se escondendo no céu,
Tentanto jogar para trás das costas,
Como uma pedra,
A redenção que um qualquer cristo lhe ofereceu...

23 março, 2010

Agropsicografia


Eu, poeta, sou um agricultor
Que ando a semear a minha semente.
Às vezes, chego a semear a dor
Que a minha mente nem por sombras sente.

E os que colhem o que a minha mão planta
Encontram na dor luz para os seus olhos.
Fazem sua a voz da minha garganta
E livram-se de correntes e ferrolhos.

Eles encontram na terra submersosLink
Os seus sonhos, a minha dor enfim...
E já que eu não sei explicar meus versos
Talvez meus versos me expliquem a mim!


[Homenagem a Fernando Pessoa e a um dos meus poemas favoritos, Autopsicografia.]