28 maio, 2009

águas passadas


depois de esquecidas as palavras depois
dos corpos sucumbirem ao cansaço do
plenilúnio líquido das promessas falsas
como juraria eu amar-te se sempre
te amei em silêncio o molhado silêncio
depois do sol se pôr na porvindoura maré
que te depositou aos pés os lençóis
mudos de silêncio o molhado silêncio
teia construída pelo cantar dos búzios
ou seriam ostras que me deste a provar
à preia-luar junto as mãos abertas em
forma de concha e sonho lagoas onde
te sopro as velas pandas os olhos líquidos
escutando-te as orações arrependidas
e esfoladas de um céu aquífero pelos
teus joelhos suportado de sereia
no final depois do molhado silêncio o suor
dos corpos que encharcaram camas as lágrimas
que secaram ribeiros as palavras que
molharam o silêncio apenas resta o cheiro
a terra húmida e a águas paradas




Poema publicado originalmente no blog Porosidade Etérea

27 maio, 2009

Link para um dos dias mais felizes da minha vida!

Auto-Retrato


Uma vez inventei um homem que sonhava
Estar à porta de uma casa sem paredes.
Mas não pude resistir à curiosidade
De espreitar pelo buraco da fechadura.

24 maio, 2009

S/título


Há algo de canibalesco no meu olhar,
Algo de incontrolável abrindo
As suas terríveis mandíbulas
E cerrando as suas presas em cada verso
De cada poema que se perde
No abismo dos meus olhos.
E sinto as íris salivando-se
À medida que os meus dentes
Trituram os sons e o seu esqueleto
Até restar nada mais que o pó
Soprado pelos lábios contraídos em forma de O
Do poeta que antropofagi.

22 maio, 2009

S/título


A sombra projectada na parede suja
E caiada
Tisna a face da aldeia
Perdida algures entre a serra algarvia
Ou a planície alentejana.
Não é o local que importa,
É sim o frágil fio que suporta
No vazio
A identidade obliterada de uma face respirando vida
Mas que, sendo pétrea, se esfinge morta.

20 maio, 2009

"7 Poemas, Uma Vida" (versão completa)

Terminada a publicação do último poema do conjunto "7 Poemas, Uma Vida", composto precisamente por sete textos, procedo à sua publicação integral na outra face do Amendual (aqui).

7 Poemas, Uma Vida (VII)


Vejo-o no vazio,
Sinto-o na ausência,
Sombra saltando na sombra,
Nas sombras se movendo
Elegante,
Felino,
No silêncio da memória que o não esquece
Fora da moldura incapaz de o prender
No espaço
Ou no tempo…
Ouço-o com a pele
Arrepiada ao som das suas pegadas
De rei-caçador
Farejando a sua presa imóvel,
Invisível – quão invisível –
Inexistente excepto no odor a brincadeira
Que o dançar serpenteante do seu rabo denuncia…
Sinto-o na ausência
Nos cantos escuros da casa que foi sua
E da memória que o não esquece…
Tenho-o comigo
Aconchegado no coração
Como aconchegado estava da primeira vez
Que escolheu para sua cama o meu colo
E fez da minha pele e da minha carne
A pele e a carne suas
Amassando pão com as garras afiadíssimas
Na pele e na carne nossas.
A minha alma cheirou as janeiras,
Deixou-me com as memórias e o fio de juta
E não sei se alguma vez irá voltar…

7 Poemas, Uma Vida (VI)


À janela olha,
Observador,
O mundo como se desenrola
Perante seus olhos de gato-menino
Farto do conforto do quarto
Curioso de aprender o que não sabe.
Da esquerda para a direita, uma senhora
E um senhor, lado a lado, sem conversar;
E no sentido inverso, duas crianças a brincar;
Atrás de um carro estacionado um cão
E os carros na estrada passam sem parar,
Dia e noite…
Dia após dia…
Noite após noite…
Semana após semana…
Mês após mês…
Ano após ano…
Nuvem após nuvem, ora secas ora carregadas de água,
Ah como gostaria de se molhar e de fugir à chuva!
Sol após sol, ora tapado ora descoberto,
Ah como gostaria de sentir a luz quente na pelagem!
Vida após vida…
E o gato-menino
Um dia descobre
O seu reflexo no portal vítreo
Que reflecte o reflexo do seu olhar felídeo
Onde se reflecte assanhada a sua alma:
O gato-menino é já gato-velho,
Tem o pêlo gasto e a alma assanhada
Domesticada…
E o gato, menino velho, velho menino, gato!,
Vira as costas à janela,
Vai beber leite na sua tigela
E procura um sítio escuro para dormir
Em silêncio…

14 maio, 2009

7 Poemas, Uma Vida (V)


O miau abre
Sensual e furtivamente
A sua boca sem fundo
Enquanto o pobre piu-piu
Se entrega a um tango
Sem movimento
Tendo por parceira a própria morte.

12 maio, 2009

Cleópatra Dançarina


Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde

Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...

Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.

E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas

Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...

10 maio, 2009

Pelagus (XXIX)


Nu ábaco da maré que pre-
-enche o trilho sideral que zingamos
Mente a veia nílica
Do corpo no de Cleópatra
Violentada por mil balaústres
Balaustrada pelo vento vil que nos soprou até aqui.
No espaço aberto o sangue e o sémen têm cor mas
Não têm odor
Nem gravidade.

Pelagus (XXVIII)


Sob o ferro somos
Aqui, ali, que importa onde?
Ainda que mil mares abríssemos
Nunca deixaríamos de acometer o teu olhar
Negro e azul,
Cleopátria.
Somos sob o ferro
Escravos e livremente ancorados
Na eterna flutuação oblíqua do teu ventre, oh Mátria,
Procurando o porto universal.

Pelagus (XXVII)


Rumo ao desconhecido
Largamos âncora
Achando fundo
No ventre da preia-mar
Onde duas ondas se tocam
E se tornam uma.

09 maio, 2009

Dom Pedro


Dom Pedro era um velho que jurava
Serem as lágrimas por si choradas
Quem lhe deixara as faces enrugadas...
E eu, jovem sábio, sempre lhe indagava:

“Mas se as lágrimas são só feitas de água,
Como te marcaram, dia após dia?”
Ao que a pétrea figura respondia,
De olhar cheio de ternura e mágoa:

“Pois se a água, amigo, até perfura
(Faca na carne, roda até doer)
A pedra de entre todas a mais dura,

Como podia marcado não ter
Um rosto amolecido p’la amargura,
Um velho rosto farto de viver?...

08 maio, 2009

Pelagus (XXVI)


Os vítreos cones partidos,
Destroços à deriva,
Derramam a sua areia sobre a sirte
Avistada.
Há um planeta de areia
A acenar
Aos corações partidos
Dos novos argonautas.
Dali já não sairão.
O nosso tempo esgotou
Mas não sem que encontrássemos o nosso paraíso:
Nova Alexandria, Cleo-
-pátria.

Pelagus (XXV)


As retinas cansadas
Descobrem para lá das pálpebras cerradas
O Fogo de Sant’Elmo
No tope do mastro in-
-tenteado
Opondo a sua vela imaculada
À vontade quebrada do espaço.

07 maio, 2009

S/título


À força dos braços e à luz das velas
Constrói o homem o seu futuro.
Suporta no ombro másculo e duro
O peso de um céu pojado de estrelas.

Com espírito divino em corpo de homem,
Desafiando a Lei da Gravidade,
Rumo ao estelífero céu sem idade,
Vai para onde só os deuses sobem.

Eis, aurifulgente e piramidal,
Quando o primeiro sol cruza a manhã,
O monumento sobre-natural:

Alcançando o tecto do Egipto nobre,
Anunciando a sua temporã
Divindade, deixando o céu mais pobre...

06 maio, 2009

licantrópico de câncer


eis o centro do universo o ralo da banheira
por onde a água suja do meu banho se escoa
apenas um punhado de cabelos misturados
com sabão permanecem vivos tudo o resto morreu
sugado pelo pequeno buraco negro debaixo dos meus
pés
.........todo o cosmos perdeu a sua cor e a banheira
.........voltou a ter a sua característica cor branca
.........como folhas de amendoeiras albinas
eis o afterlife o espelho onde sulco
versos na superfície plena de água vaporizada
quando penteio os cabelos molhados
não me vejo devido ao efeito de condensação
da água
...............limpo a lagoa do poema com a palma da mão
agora já te vejo
olhos negros como o ralo da banheira por onde todo
o universo se escoou cabelos longos e entrelaçados
como os fios da história que nunca contaste os dedos
secos pelo hálito das palavras a boca aberta
como uma vulva promíscua acenando a língua à multidão
de sentidos e o espaço inter-dental colorido pelo sangue
das gengivas que se vazaram
.....................................................as tuas gengivas albinas
pulmões secos e ressequidos no lican–
–trópico de câncer

05 maio, 2009

Auto-Retrato


Ao lamber um borrão de tinta do meu dedo,
Surgiu-me na língua a ideia de usar
O céu da boca como Capela Sistina
Mas, em vez de pintar a Criação, fazer
O meu auto-retrato. Mas não sei que diga.
Por agora, só me ocorre dizer que tenho
(E normalmente não escrevo em alexandrinos)
A pele marinada p’lo sol mediterrânico.
De resto? Satanista. Comuneu. Atânico.

Auto-Retrato / Paisagem Vista Por Turista Numa Praia do Rio de Janeiro


Eu–
.....–tí–
........_–como

Macaquinho de imitação


Macaquinho maca–
–cão
Macaquinha maca–





–rrão

04 maio, 2009

Pelagus (XXIV)


Imponente,
A figura de proa
Rasga a zona fótica,
Os olhos luciferinos aclarando
O espaço negro à sua frente
Sirgando às cegas
As palavras tombolares
Que jamais alguém tomara pela mão
Enquanto uma fiada de sondas
Percorre o rumo pré-determinado,
Serialmente,
A intervalos regulares,
Sem nunca devolver o eco,
Perdendo-se numa zona de silêncio.

Pelagus (XXIII)


Aqui jaz naufragada uma confissão escrita para não ser lida.

Pelagus (XXII)


Desperta
O nebuloso acaso
Que encerra-
-nos corações enterra
O porvir
Da névoa incerta
Que trai o cair
Da noite
Sempre certa
Piscando relampejos
No seu sinal
Ora exposto
Ora eclipsado.

03 maio, 2009

alamedas celestes


sento-me nesta alameda onde todas as minhas memórias
são plantadas nesta esplanada de onde aceno ao empregado
de mesa que quero o costume uma bica se faz favor aceno
também à criança que houve em mim e à infância de um céu
limpo depois de engolido o líquido negro e amargo açucar só
no primeiro café o da manhã espeto palavras como agulhas
na língua dormente até ela
notem como construo a frase utilizando para sujeito não um pronome possessivo mas um pronome pessoal que transporta a língua a minha para uma esfera fora do plano do eu
_____...................................sangrar e até o sangue rubro
se misturar com o castanho do café e até esta mistura
se misturar com a saliva branca e até que a língua volte
a adormecer e a sonhar alamedas depois posso finalmente
abrir os olhos com um sorriso fingido nos cantos da boca
e vejo o céu coberto por uma nuvem de pombos
cinzentos de que outra cor poderiam ser os pombos migrando
da minha para outra qualquer memória e depois do bando
passar o céu já não é cerúleo mas gris e desmorona-se
a cada segundo que passa e a cada grão de café esmagado
pelas raízes da minha placenta
..... ___________....rebentaram-me as águas
_______________.e o céu é novamente limpo
___............_______.pela última e primeira vez

sonhos cor-de-mofo


de todas as vezes em que adormeço há um cheiro
de mofo que inunda as narinas do sonho que
recorrentemente me sonha tubos de tinta
apertam-se contorcendo-se sangrando para dentro
da minha boca cada pingo de líquido colorido
que neles houver
_____________em boa verdade não há princípio
nem fim deste sonho apenas o meio apenas
o lento desenrolar de um indeterminado número
de tubos de tinta sendo vazados para dentro
de mim
______e agora que penso nisso apercebo-me
que neste sonho nem sequer há adormecer ou
acordar apenas tubos de tinta sendo continua–
–mente vazados para dentro de mim
____________________________ao menos
agora sei ao que sabe o arco-íris e também
ao que cheira
______________________________a mofo