18 março, 2009

Feijoada de Carne


Comia-te toda,
Inteira,
Ali mesmo,
Como quem come
Feijoada de carne
Directamente da panela ao lume
Com as mãos,
Lambendo os dedos
Queimados
Enquanto o molho
Quente e espesso
Envolve toda a língua num abraço
De fome e de prazer.
Era assim que eu te comia,
Toda,
Inteira,
Aqui mesmo,
Vindo-me em ti como
A panela silvasse
Tssssssssssssssssssssssss
Anunciando-me
Vem para a mesa gourmet
A feijoada está feita,
Temperada,
Pronta para ser
Vorazmente devorada…

15 março, 2009

7 Poemas, Uma Vida (III)


Às matinais duas de um Janeiro frio,
Por cima da cidade dormente,
A noite geme com cio.
Onde está toda a gente?
Num bar talvez,
Mais um copo vazio…
Talvez no lar concupiscente
Longe do olhar alheio
Onde a moral perde o freio
E o corpo sente o que a vergonha lhe mente…
Ei-los, na rua,
Belos, loucos, felinos…
Ele, pardo como a noite que os cobre,
Cobre-a a ela, de pelagem nívea,
Com uma pesada e sensual brutalidade
Que tresanda à mais bestial lascívia…
Másculo e robusto, ele
Deposita, decidida mas ternamente,
Uma longa e dolorosa dentada
No pescoço frágil da sua fêmea dominada.
Consumado o amor que eles nunca mais lembrarão
Separam-se os corpos
Mas permanecem os líquidos e os cheiros em comunhão.
Ele para um lado, ela para outro,
Sentados na sua cama de lençóis de asfalto,
Limpam-se, cada qual a si mesmo,
Sem mais ternura, sem mais querer…
Quando aprenderá o homem que a vida
Não mais é que comer, beber e foder
E não necessariamente por essa ordem?
Quanto mais tempo se iludirá o Homem
De que o amor sabe melhor se pecado
E expurgado vezes sem conta
Pela absolvição de um acto não confessionado?

13 março, 2009

S/título


O sufoco de uma viagem
Ao país dos sonhos
Pode ser medido
Pelo grau de incerteza
Do desejo de readormecer.

10 março, 2009

Uma Estação de Rádio Mal Sintonizada


A loucura é uma estação de rádio mal sintonizada
E a minha voz um DJ arranhando etimologias até
A noite ser uma imagem límpida debaixo
De uma chuva de sons sem significado.
Não tentes desligar-me pois eu não tenho pilhas
Nem sou alimentado pela electricidade. Abomino
Tudo o que seja fruto do homem, eu que sou eu
Próprio filho de Moisés.
Aqui, onde Deus te esqueceu, entre as ondas,
Mergulho-te nos olhos azuis pequenas poças de água da chuva,
Percorro-te os caminhos todos de ti que tu próprio desconheces,
Rodeado de tubarões e carpas,
E, por fim, chupo os dedos mindinhos dos pés
Da tua alma. É madrugada.
O programa acabou. Amanhã voltarei
Mas não, nunca, à mesma hora.

7 Poemas, Uma Vida (II)


Dorme,
Incauto dos perigos do mundo
Lá fora,
Exausto pelos cansaços aristocratas
De quem ignora
Que a vida pode ser filosofada
Para além do comer a horas
Ou do correr atrás das gatas.
E quando, de quando em quando,
Suspenso o sono
E semi-aberto um olho, às vezes os dois,
Fita o dono,
Suspendem-se também o tempo
E os perigos do mundo
Lá fora,
Para voltar a semi-cerrá-los
E a enroscar-se fragilmente,
Confiado descuido,
No colo dormente
De quem o ama…

09 março, 2009

Resignação


À resignação dormente dos teus braços,
Nas noites solitárias povoadas
Por criaturas imaginárias, me
Atraco, navio fantasma derivando num vaivém
Líquido de sons inventados pelos dedos
Do pianista que se escondia nas sombras,
Cavalgando a lua e as nuvens
Da tempestade de aplausos,
Tocando,
Como fossem teclas,
Cada pétala do meu coração...
E se o pianista lho pedisse,
Bateria o melro
As asas novamente quando pousado nas cordas
Por baixo
Dos limites intentos da minha ilusão?

Poema escrito sob o feitiço do tema "Resignação" do In Tento Trio.

07 março, 2009

Pelagus (XIII)


Oito vírgula três minutos
É o tempo estimado
Para que a luz do sol
Ilumine o céu
E chegue à Terra.
E a ti?
Qual é o tempo estimado
Para que recebas o meu
Amo-te
Em perfeitas condições de recepção
Sem escarcéu,
Sem ruídos ou interferências?

06 março, 2009

A Navalha Que Degolou Um Cão Andaluz


E quando vires a navalha de barbeiro
Cortando a lua como se fosse o teu olho
Saberás que sou um cão andaluz pincelado
Pela projecção da tua loucura...

Nota na Porta de um Frigorífico na Vila de Figueres, Catalunha


Nota (Maio de 1908):

Quando for para Madrid
Comer uns dalinianos ovos estrelados
Surrealisticamente cozinhados
Ao lume de uma girafa em chamas
E chupar-lhe todo o leite das mamas!
Depois, aquecer o tempo,
Derretê-lo,
E moldar o meu futuro bigode
Como dois ponteiros
Badalando meia-noite e meio-dia
Numa perfeita e simultânea desarmonia.

Ass: Salvador

P.S.: após tudo isto,
Ir para a escola de belas-artes que o papá escolher.

05 março, 2009

7 Poemas, Uma Vida (I)


Nunca, até hoje, da minha poesia
Se alimentaram muitos gatos
Ou nela saltaram ou ronronaram…
Talvez seja hoje o dia
Certo para fechar as cortinas
Das minhas janelas
E chamar o vadio que brinca na rua!
Vou deixar só a porta aberta
E um rasto de odor a peixe,
A carne despida de escamas, nua,
Como um longo e lascivo verso alexandrino,
Trilho que conduz
Um antigo instinto felino…
Quando dois olhos brilhantes
Reflectores da pouca luz
Saída do meu poema,
Assinalando a sua presença
À porta do meu poema,
Se encontrarem com os meus,
Vou pôr uma mantinha
– velha mas quentinha! –
Sobre as minhas pernas
E chamá-lo:
“B’ch b´ch b´ch b´ch b´ch b´ch
Anda cá bichano”…
E quando ele, pata ante pata,
Dançando e saltitando,
Se vier enroscar no meu colo
Sob o jugo da minha mão
A acariciar-lhe um lar no pêlo,
Vou simplesmente miar-lhe ao ouvido:
“Gato, amo-te
Como tu amas a liberdade,
Um ratinho de corda ou o novelo de lã”…

04 março, 2009

Capucho Encarnado


Em negra face nas sombras uivando,
Num sonho repetido e cansado,
Ela vê-se num virgem bosque andando
Vestida de um capucho encarnado.

Numa floresta nascida da Treva
Com árvores do tamanho do medo,
O ar é tão pesado que enerva
E encerra em si horrível segredo.

Quando o sol se põe e cai a escuridão
Clamar socorro é inútil e vão
Pois ninguém a poderá ajudar.

Súbito acorda, escarlate, grosseira,
Uma voz sussurra-lhe à cabeceira:
O grande lobo mau vai te apanhar…

03 março, 2009

A Poesia


Aleivosa e insinuante
Confunde-se reptante
Com o calor tórrido,
Mexicano,
E com o cheiro derramado
A tequilha
E a sonhos húmidos
Com sabor de chocolate
E baunilha.

02 março, 2009

O Crítico Literário


Com a caneta em punho, justiceiro
Ímpio, em missão para o seu jornal,
Tanto faz a crítica musical
Como analisa o mercado livreiro.

Pronto para a matança, o guerreiro
Revê o seu bélico arsenal:
Gramática, compêndio universal,
Dicionário p´ra termo mais brejeiro.

É opinion maker abalizado
E o público aceita seu dom sicário
Pois no verso e na prosa é versado.

Só ele sabe de cor o abecedário.
De quem é o perfil apresentado?
Pois é o do crítico literário!

01 março, 2009

S/título


Na maleabilidade incerta da luz opressora
A instância final e arbitrária do objecto
Iluminado não se augura
Um destino contínuo e recto.
A linearidade da vida é mera ilusão
À qual uma certa fobia às linhas curvas
Torna abstracta qualquer noção de imortalidade.