29 novembro, 2011

S/título


As sombras e as vozes no silêncio da manhã

Ausentam-me os sonhos para um país longínquo

Feito de sargaço e de neblina e de poeiras cósmicas:

Anjos brincam no recreio do universo baloiçando-se

No prumo invisível que sustenta as estrelas verticais.

Pardais & rouxinóis voam pelo espaço até aos confins

Do olhar horizontal do seu próprio deus interrogando-se

Sobre o que haverá para lá do além?

E o fumo do cigarro enrola-se nas asas dos pássaros

E enrola-se nos pulsos dos que batem com os nós dos dedos

Em mesas de madeira e ainda na língua dos que amam as palavras.

26 novembro, 2011

Pedro & Inês


Foi em flor que Pedro, príncipe e gaio,

No seu belo puro-sangue montado

Pelas campinas desacompanhado,

Sentiu o perfume de Inês em Maio.


Bastou um só olhar, como se um raio

De ardor o tivesse atravessado,

E Pedro, príncipe e petrificado,

Ficou do amor servo, de Inês lacaio.


Porém o Rei, grave e amargo mas forte,

Mandou matar a formosa Inês

Para não trazer ao Reino má sorte.


Matou-a Inveja e Mesquinhez…

Mas Dom Pedro, resgatando-a à Morte,

Torna-a rainha e amada outra vez…

21 novembro, 2011

Medusa


As vozes na ágora vespertina: a areia quente na cavidade nasal e na garganta:

o silêncio do quarto escuro e da folha branca: escuridão que se move

por entre os dedos.

As serpentes assobiam ao céu da boca em adoração cega –

O que sentes é amor, pura água fresca, no palco de uma tragédia grega

ensaiada no deserto.

O sangue quente escorre-te pelas coxas abaixo; e a esporra

pinga-te dos lábios para os pés: e tu esperas pelo momento certo

para te limpares, para te livrares dos teus segredos.

Mesmo sem cabeça, as serpentes continuariam a levantar-se

Assobiando sangue em vez de silvos; e nas flores enfermas,

Medusa, água mole em pedra dura tanto bate até que cura…

Ecce Homo

Eis-me: o princípio e o fim de mim mesmo – não tenho idade nem local de nascimento.

Eis-me: a coroa de serpentes enroladas em galhos de amendoeiras que me diademam a cabeça – não tenho bilhete de identidade nem pago impostos.

Eis-me: o descendente do que nunca fui e o fruto do verbo na carne que amadurece como o tempo – não tenho nacionalidade, porém gosto de pensar que a minha pátria são as línguas portuguesas.

Eis-me: oscilando entre um pessimismo vitalista e um vitalismo pessimista, mais real do que o homem-casca que habito – não sou poeta, mas atiçador de palavras e escrevinhador de incêndios.

Eis-me: e quero que me dês Roma inteira incendiada – ou que não me dês absolutamente nada.

Eis-me: quem são eu?

12 novembro, 2011

Fado da Ria Formosa


Formosa a Ria lamenta
Os homens indo p'ró mar.
Chora quem dela se ausenta
No pélago do seu lar.

Cheiram a Ria as mulheres
Com carinho mas desdém,
Desesperando as marés
No seu eterno vai-vem...

Ouvem os cantos salgados
De uma amendoeira em flor:
Fala aos corações quebrados
De quem não esqueceu o amor.

E uma mulher sangra o seu
Ventre de amante e de mãe,
Desesperando as marés
No seu eterno vai-vem...

06 novembro, 2011

Ying Yang

Ying Yang.
Anjos simétricos
conduzidos pela embriaguez
do incesto.

Quem te disse que os anjos não têm sexo?
não fazem sexo?
não amam o sexo?
como quem ama uma talhada de melancia desfazendo-se
em água no céu da boca?
ou como quem ama o sabor do mel no corpo
lambido pela língua de um amante?
ou o cheiro do leite num ventre frutífero?
Pêras, uvas, mangas, figos, ameixas, dióspiros, cerejas
- há de tudo nos meus poemas e no meu pomar.

O olho procura a simetria da beleza:
busca a ordem primária e os laços sensuais
que nos atam.
Quem se quereria desprender do mundo se soubesse
que para lá do horizonte não há mais que horizonte?
Quem?

A retina - um círculo - uma mandala - o mundo - uma mesa redonda.
Uma vez, disse ele, gostava de provar o sabor de carne humana.
Todos o ouviram mas ninguém o contemplou: os rostos
afundaram-se ainda mais no repasto, em perplexidade,
em agonia,
em sofrimento -
e ele sorria.

Analepse: boa noite, meus senhores,
da ementa de hoje constará cabeças de carneiro
assadas no forno, com batatinhas a murro
a acompanhar.

03 novembro, 2011

Semáforos & Metáforas


(anda cá não tenhas medo
só tens que caminhar em frente
quero contar-te um segredo)

descalça-te e sente o alcatrão ainda fervendo liquescente
como um sonho húmido e lascivo em que acabaste de entrar
como um sonho em que a pele do objecto sonhado
se confunde com a tua anda cá nada receies
quero ensinar-te do universo as leis
básicas e primitivas escondidas na linguagem semafórica
ao amarelo ignora não deixes que a lividez e a apatia te ordenem
ao verde dá-lhe tempo todas as revoluções necessitam do seu tempo para maturar
é ao vermelho que tens que prestar especial atenção
quando todos param avança
avança em direcção ao sol que se deita debaixo do porvir
que mais ninguém viu chegar
o impossível não é uma quimera, apenas
o nunca visto
ainda

anda cá e acredita-me o teu universo rege-se por simples linguagens semafóricas
o meu é ditado pela Poesia Princesa e pelas suas aias metafóricas

01 novembro, 2011

O Cavaleiro Sem Cabeça



A morte cavalga negro corcel

Sussurram os aldeões em segredo,

E depois gritam fugindo a tropel,

Vendo o medo que ao medo mete medo:


Eis que, acéfalo, surge o cavaleiro

Empunhando o horizonte como espada.

Toda a aldeia se esconde num celeiro

P’ra fugir à criatura malvada!


Perscrutam a escuridão, receosos

Do som de cascos que de fora vem…

Agacham-se em silêncio, medrosos…


Mas sentem o abrigo a se incendiar:

Fugiram à lâmina do homem sem

Cabeça, mas não ao fogo do seu olhar...