30 abril, 2009

tigres de papel


escondem-se tigres de papel no interior das gavetas
arquitectadas no plano vácuo e oblíquo que o movimento
da minha mão esquerda pressente movendo-se
muito lentamente os dedos dessa mão surpreendem-se
lutando entre si para chegar antes que todos os outros
à zona da canela onde a tíbia a direita para quem
se interrogue outrora se partiu
__________________ uma vez chegados
a meio caminho digamos ao nível dos joelhos
exactamente entre os joelhos equilibrando-se
na recta imaginária que os olhos do espelho
defronte poderiam traçar entre as duas rótulas
todos os cinco dedos olham para trás na direcção
da mão direita que segura um pénis também
de papel tal como os tigres escondidos como
se segurasse uma caneta
____________nisto ouve-se o rugido
de uma gaveta a abrir e o quinteto da mão esquerda
é engolido pela enorme boca da fera saída do poema
escrito pelos cinco dedos da mão direita
__________________entretanto a língua ri-se
roçando-se lascivamente até sangrar pelos dentes

S/título


Pela porta escancarada para o rosto da noite
Não se vê sombra,
Não se vê luz,
Não se vê nada.
Tudo é escuro e o tudo
Esconde a presença dissimulada
De um odor trazido pela aragem
Gélida e serena…
Odor doce de amêndoas que alivia
A dor ausente que o toque da morte gangrena.

29 abril, 2009

O Maquinista Maniqueísta


Olh'ó maquinista maniqueísta
Que segue em frente sem nunca parar,
Carrila em bitola monoteísta,
Vai até onde a linha o levar.

Já o maquinista maniqueísta
Tem cheios os inúmeros vagões
Atrelados ao comboio baptista
Circulando nos crentes corações.

Grito: "Oh maquinista maniqueísta!
Aonde pensas tu que irás chegar?
Não vês que andas às voltas numa pista
Em eterna viagem circolar?"

Mas o maquinista maniqueísta
Segue sempre em frente pois é feliz.
Tem a meta já ali bem à vista,
É lá onde se cruzam os carris...

28 abril, 2009

Amendual, parte 2

Servindo de suporte ao amendual.blogspot.com, sítio onde regularmente publico alguns poemas (se me for permitido por vós, leitores, assim classificar os versinhos que cá vou escrevendo), anuncio que tenho outra pernada do Amendual para partilhar convosco.
Assim, quem aceder a amendual.wordpress.com poderá ler alguns contos que, por serem maiorzinhos que as micronarrativas que por cá vou mostrando, achei por melhor publicar num outro sítio, assim como, no futuro, ler algumas das obras (completas) de que aqui neste Amendual original vou publicando alguns poemas. Como já hão-de ter reparado, os poemas estão agrupados em várias opera, sendo que uma vez um opus completo será publicado no outro Amendual (o tal em http://wordpress.com/). Assim, no futuro, e uma vez publicados todos os poemas do "Amanhã Chovi" aqui, procederei à publicação integral e pela ordem certa dos poemas no outro Amendual, o mesmo acontecendo com as restantes opera, tal como "Pelagus", "Versos Sem Sentido Consentido", "De Sons e de Sangue", etc. - a excepção a isto serão mesmo os poemas agrupados sob a etiqueta "Insanabile Cacoethes Scribendi", pois esta categoria corresponde a poemas que não fazem parte de nenhuma obra (poemas dispersos, se assim lhes quiserem chamar).
Para terminar, deixo o link para que possam ler no outro Amendual um conto intitulado "A Reconquista" (é só carregar aqui), escrito no ano passado. Espero que gostem!

Pelagus (XXI)


Lento mas inexorável
O nimbo avança
Até se expandir a todo o espaço.
Só depois, se vir, virá a bonança.
E eu, Lucas Nefelibata,
Desafio o acto de deus
No momento da procela,
O peito pando de esperança,
De candeio por olhar.

Pelagus (XX)


Da planura azul do teu regaço
Sereno, carinhoso
E maternal,
Nasce negro e gigantesco abraço
Violento, apaixonado
E mortal.

Pelagus (XIX)


Sangra-se a nuvem
Perante a órbita branca e elíptica
Do olho que a vela.
Sagra-se a luz da vida dos que no mar morreram
E dos que no espaço viverão.

Pelagus (XVIII)


Anda para o caminho!,
Grita a voz comandante,
A pé de galo,
Aos ouvidos
Ensurdecidos pela acção galvânica
Do homem do leme.
À flor do espaço
Não podemos permanecer a pairo,
Ouvindo a bela voz das sereias
Cantando em seco.

27 abril, 2009

S/título


Tenso,
O delgado fio suporta
O peso de um corpo
A partir do nada.
Equaciona, turva
E vislumbra uma recta
Onde se sente uma curva
Fora da estrada.

Por Favor, Lava-me os Olhos...


Por favor, lava-me os olhos cansados
Com a água pura do teu amor.
Tu, anjo, que ainda não tens gravado
Na retina o caminho da dor.

Por favor, lava-me os olhos doridos,
Não me temas, só tens que me tocar.
Trago na alma um olhar enegrecido
Cheio de mágoa que tens de vazar.

Por favor, lava-me os olhos vazados,
Trago-os vazios de tanto sorrir.
Sou máscara de um rosto cansado
Que só é rosto por saber fingir.

Por favor, lava-me os olhos fingidos.
Arranca-mos e joga-os ao mar.
Sinto a maresia a colori-los,
São agora azuis do azul do mar.

26 abril, 2009

o som dos corvos em abril


o som dos corvos preenche a pauta da noite
notas grasnadas na imensidão do céu negro
cúpula quente sob a qual inúmeras gargantas
cantam em uníssono silêncio o balbuciar
das músicas transportadas do além
e do aquém-tempo no magnético ressoar das memórias
_________________________pousado nas cordas
dos violinos e neles debicando a cor e a forma
o bando dá-se à multidão cobrindo-a com
as suas penas e os seus sons de negociadores
da morte
___________de livre vontade reunidos na necrópole
lembrança temporã de um tempo que já veio
mas que nunca chegou todos os transeuntes
páram e rodopiam sobre si mesmos como
notas grasnadas e insepultas fazendo-se vir
no ardor do silêncio que murmura abril invocando
a onomástica anónima dos seus capitães

24 abril, 2009

Abril


Saiu um grito à rua
E traz revoltado o povo na garganta.
Na mão fechada traz segura,
Desfraldada,
Uma bandeira em riste
Enquanto a aberta conduz
Uma criança, de sorriso triste,
Em direcção ao futuro.
Ah pudesse o próprio povo
Ser um grito de criança
E brincar com o tempo a seu bel-prazer
E o travo que nos corrói a língua
Já não seria agridoce.
Ah Abril, Abril,
Para quando nova chuva de cravos?
Uma gota,
Uma pétala que fosse…

23 abril, 2009

Adeus, meninos!...


No sorumbático troar dos sinos
Celebra o povo a perda dos seus
Como se um sonoro e cadente adeus
Chegasse aos ouvidos dos seus meninos.

Nos caixões, serenos e adormecidos,
Vestem-se a rigor para a viagem.
Na laje, uma inscrição com sua imagem
Impede que no escuro andem perdidos.

Seu dia finda, vão para a noite eterna
Por um rio de lágrimas – sua cama –
Choradas em sangue por quem os ama.
E na noite, ficarão à nossa espera…

20 abril, 2009

Revolução


Que dizes?
Como a não ouves?
Se eu a ouço
Mesmo agora,
Cantora insonora
Rompendo com a sua voz
A aurora
Que sucede à noite parda…
Não ainda a ouves?
Hás-de ouvi-la…
…quando for anunciada a hora,
Quando a hora for chegada…

16 abril, 2009

Pelagus (XVII)


Avança o vaso
Em missão de pacífica descoberta
Com a flâmula (des-)
-coberta,
O olho humano em cansada arfagem pelo horizonte
Enquanto o
A-
_ -ne-
_____-mo-
_________-ci-
____________-na-
_______________-mó-
___________________-gra-
_______________________-fo
_______________________Regista a velocidade e a direcção do
______________________________________________[vento
_______________________Automaticamente.

Pelagus (XVI)


Descobre para lá do brilhante azul
Mar estanhado
Do celeste véu
Que te cobre, amor.
As estrelas que se escondem
Para lá do que consegues ver
Traçam o perfil de um rosto
Que te fita do longe:
O meu.

15 abril, 2009

Obituário


Penso que terá sido de anteontem
A quinze dias
Que acordei às 4 da tarde com a lua
À minha cabeceira
Mascarada de enfermeira
E segurando a página do obituário
De um qualquer jornal diário. Estendeu o
Seu braço de luar e deu-ma
Para que a pudesse ler:
“Poeta desconhecido morre em cirurgia
De rotina. Durante
Uma laparotomia
Uma alcateia de láparos fugiu
De dentro da sua lura no abdómen
De Alexandre Homem
Dual
Levando consigo o coração do escritor
Desconstruído em pequenos pedaços.
No lugar do coração, foi encontrada
Uma lapa funérea com um poema inscrito
Mas ninguém o pôde ler porque o seu autor
Morreu antes sequer de o ter escrito.”
Sorri e devolvi o jornal à lua. Ela serviu-me
Uma chávena de café e perguntou-me
O que dizia o poema. “Amanhã Chovi”, respondi-lhe.
Ela sorriu-me de volta imediatamente antes
De regressar ao céu nocturno. Ainda hoje, nos meus poemas,
Lhe trago o sabor da carne – e do café – na ponta dos dedos.

Alterwords

Tive o privilégio de ser incluído, através da publicação de dois poemas, no terceiro número de uma nova revista literária on-line, a Alterwords, um projecto de periodicidade mensal e download gratuito.
A Alterwords chamou-me a atenção desde logo por ser um projecto co-gerido por uma das vozes que mais gosto de "ouver" escritas na blogosfera: a da
Carla Ribeiro. Mas mais importante do que isso, veio a chamar-me a atenção pelo que afirma no seu curto manifesto, se assim o poderemos chamar: "A AlterWords quer elogiar a literatura porque a literatura não é lixo". Não tenho a veleidade nem a prepotência de discutir aqui ou seja onde for se aquilo que escrevo é literatura ou sequer se tem algum valor, pois, sendo honesto comigo próprio, tenho de reconhecer que não é a mim que compete essa decisão (just for the record, concordo, se não na sua totalidade, pelo menos com a maioria dos postulados teoréticos da chamada Estética da Recepção); essa decisão só poderá ter como juízes o Leitor e o Tempo. Mas de qualquer forma, porque é como lixo que muitas vezes a arte é tratada, inclusivamente por muitos dos artistas contemporâneos, e porque em tempos de crise a cultura tende a ser posta no baú numa espécie de hibernação, resolvi contactar os responsáveis da Alterwords, para oferecer o meu parco mas honesto contributo no seu projecto. Assim, e porque escrever é, para mim, uma função fisiológica como comer, beber, dormir, etc., porque não participar nos primeiros passos deste novo projecto? Enviei 3 poemas à Carla, dos quais 2 foram publicados, facto pelo qual agradeço desde já a simpatia.
Fica então a recomendação da leitura da Alterwords, projecto de Carla Ribeiro e Bruno Pereira, e segue-se um dos 2 poemas saídos, intitulado Obituário. O outro, Amanhã Chovi, foi publicado logo nos primeiros tempos do Amendual e pode ser (re)lido aqui. Boas leituras!


P.S.: aqui ficam os links para os dois números anteriores da revista - Alterwords n.º 1 e Alterwords n.º 2.

14 abril, 2009

Ciclos


Eis a Primavera
E a tiara de andorinhas
Cobrindo-lhe a testa.

*

Trago-te o sabor
Na ponta dos dedos nus
Palpando o Verão

*

No Outono escarlate
Sinto-te as folhas dançando
Pousadas nos lábios.

*

Com as mãos, afasto-
te a branca neve dos ombros
No estertor do Inverno.

*

No final dos ciclos
Sobram as palavras vãs
P'ra nos confortar...



Conjunto de 5 haiku que tive o prazer de escrever para e ver publicados em aquele que considero ser o melhor blog de e sobre poesia da blogosfera portuguesa: o Porosidade Etérea.

13 abril, 2009

Oh Senhora


Oh senhora, são teus olhos,
Que me fazem divagar
Suspirar e desejar
Ser alvo do seu olhar…

Sim, são teus lábios, senhora,
Os verdadeiros culpados
De meus lúbricos pecados
Esses teus lábios rosados…

São teus cabelos, senhora,
Que me levam a andar
À deriva e a ansiar
Por neles eu me afogar…

Pois sois vós enfim, senhora,
Sois vós, doce rapariga,
A vilã que me castiga
Com esses beijos de amiga.

12 abril, 2009

Caixa em Forma de Coração


Esculpiste uma caixinha
Feita em madeira,
Qual carpinteira,
Colada com tuas lágrimas,
Gotas de orvalho caídas
De uma parreira
Recém-florida...
Encerraste o coração
Dentro daquele caixão,
Qual carpideira,
Quando eu morri...
E eu espero no meu caixote
Que te traga a mim a morte
A noite inteira...

"fado..."


Amália nascera muda; Alfredo, surdo, somente aprendera a articular uns grunhidos, pelo que a linguagem corporal lhes bastava. Os dias passavam sem que houvesse necessidade do uso de palavras. Mas quando o sol se punha, Amália despia-se e, nua, ficava em frente da janela aberta, deixando o bafejo lisboeta beijar-lhe a pele e despertar-lhe a voz dos sentidos, enquanto a noite lhe cobria os ombros com um xaile negro. Alfredo, ouvindo o chamamento das estrelas que assomavam, erectas, nos seios de Amália, despia-se também e deitava-se na cama, à espera da amada. Lentamente largando o xaile, ela deslocava-se, arrastada, lânguida, para cima do corpo do amante. E a cada movimento licencioso de Amália, Alfredo gemia, como uma guitarra, sentindo enterrar-se cada vez mais no refrão do fado que ela, em silêncio, cantava.

"Fado!"

Lisboa, 1945. Soltando as palavras como fossem decretos, o Cardeal disse ao Professor que precisavam de tomar pulso à Nação. O Professor fez um gesto repetido com a cabeça, demonstrando a sua concordância. Porém, inquiriu:
“Mas como?”
“Fátima, Futebol e Fado”, respondeu o Cardeal. “Os ópios do Povo!”
“Fado?”, perguntou o Professor.
“Fado! Porquê? Não gosta?”
“Gosto… É só que eu sempre acreditei no Livre-Arbítrio…”

Fados de Xaile Despidos

Hoje inicio a publicação de uma nova opus (ou conjunto de textos/poemas, se assim lhe preferirem chamar) intitulada “Fados de Xaile Despidos”. Trata-se de um conjunto de poemas inspirado precisamente pelo estilo de música (estilo de vida?) referido no título: o tão lusitano Fado. São poemas escritos num estilo estrutural que os tornaria facilmente "letráveis" enquanto "letras de fado". Não sendo músico senão das palavras, esta é a minha forma de cantar o fado...
Juntamente com o primeiro poema do conjunto, publico ainda duas micro-narrativas que saíram na Revista Minguante há alguns meses atrás, precisamente escritas para esse número sob o tema “Fado”. Espero que gostem das micros e, especialmente, do “Fados de Xaile Despidos”.

10 abril, 2009

Pelagus (XV)


No silêncio da noite perpétua
Perpetua-
______ -se a ausência de sonhos.
Conto estrelas para adormecer
À medida que as vejo desfilar, como aljôfares, a granel
Enquanto singramos para o abissal céu
Na quadrícula de pixels
Como faúlhas de fogo fátuo
Procurando a nossa nova Alexandria.

Pelagus (XIV)


Num universo cheio de nada,
O que procuramos?
Até que fronteiras
Estamos dispostos a imaginar
Se a última fronteira
Não é solo firme
Onde o vigia no cesto da gávea
Possa gritar
Terra à vista?

09 abril, 2009

7 Poemas, Uma Vida (IV)


Descansa, fatal, no intervalo invisível
Do mosaico formado sob o peso
Dos seus músculos confundindo-se prolífico
Na vegetação sonhada que esconde
O seu instinto matador,
A brancura caçadora dos seus caninos…

S/título


enSimesmado
Deus jaz
e em dor
o mundo esquece