31 março, 2010

A Noite da Floresta


Licantrópico,

O vento chama

A matilha

Uivando nomes

Que só os seus irmãos de sangue

Poderão compreender…

E na noite da floresta,

Enrodilha-se na lua

Transportando o cheiro do plenilúnio

Até ao nariz da floresta

Onde, antropomórfica,

A besta

Sente os seus pêlos interiores

Eriçando-se

Ao sabor do vento…

Natureza Morta: cadáveres dispostos arbitrariamente numa praia


Cadavéricos corpos à luz

Das estrelas em Faro foram nados

Invadindo as águas costeiras

Que lhes reúnem os ossos quebrados.

Falam na língua que a lua traduz

Em verbos de silêncio preenchidos

E trazem nos olhares as canseiras

De quem tudo sente em todos os sentidos…

30 março, 2010

Pub

HOJE: DRACULEA Café Poesia.

Todas as terças, à noite, no DRACULEA* Café Bar (Rua Dr. Rodrigues Davim, 44, Faro)

*Domus Regia Artis, CULtus Et Amicorum

S/título


A vida, neblina da vicissitude, é uma composição de [contrariedades
Escrita pela mão de uma noite de silêncio inconsolável, inatingível
Como a eternidade do mar... uma pedra na graciosidade do sapato
Que o encanto supremo da saudade nos faz calçar...
E é indelével que dela nos havemos de enamorar...
Mas a morte, como um terrível sintoma de mucosa constipação
Que interrompe a serenidade de um quente e íntimo dia de verão,
Lança-nos violentamente no místico oblívio de um éden [inverniço...

27 março, 2010

Natureza Morta: uma carcaça disposta numa cama de flores


a vida é uma puta pestilenta
coberta de pústulas plenas de pus
e de ironias pusilânimes
uma chaga cheia de chamejantes
infortúnios repleta de bichos
comendo-nos de dentro para fora
rompendo o fino véu do hímen
putaveril de uma vulva inodora

ah que bem cheira a primavera no equinócio de março

26 março, 2010

Sorte Maldita


Maldita sorte esta que me acompanha
Ao pôr em palavras o pensamento.
Nem sequer me vale a rima! Não há alento
Diante de uma incompetência tamanha.

Nem o verso livre me sai bem – bem tento!
Pasmo-me perante a recusa estranha
De reconhecer que não sou um Pessanha
Ou um Cesário, só um poeta sem talento...

Que inveja de vós, tríade magnífica,
E da vossa pena onde pontifica
O verbo e o metro e todo o esplendor

Do Camões, poeta e amante, do fero
Bocage e do filosófico Antero,
Seja em sonetos de morte ou de amor...

Madalena


Pela noite serena caminha Madalena
Com seus pés descalços,
Dançando de estrela em estrela.
A brisa da noite sopra o seu cabelo
Destapando a face que um anjo lhe revela...
Pela noite calma vagueia a sua alma
– Pálido reflexo da sua ígnea beleza
Fugindo e se escondendo no céu,
Tentanto jogar para trás das costas,
Como uma pedra,
A redenção que um qualquer cristo lhe ofereceu...

23 março, 2010

Agropsicografia


Eu, poeta, sou um agricultor
Que ando a semear a minha semente.
Às vezes, chego a semear a dor
Que a minha mente nem por sombras sente.

E os que colhem o que a minha mão planta
Encontram na dor luz para os seus olhos.
Fazem sua a voz da minha garganta
E livram-se de correntes e ferrolhos.

Eles encontram na terra submersosLink
Os seus sonhos, a minha dor enfim...
E já que eu não sei explicar meus versos
Talvez meus versos me expliquem a mim!


[Homenagem a Fernando Pessoa e a um dos meus poemas favoritos, Autopsicografia.]

22 março, 2010

Da lúgubre peste

Hoje, publico algo em que participei mas que, em boa verdade, não é meu. Trata-se do poema "Da lúgubre peste" de Gavine Rubro. Qual a razão de o publicar aqui no Amendual? Participei na sua construção. Mas não é meu. Porquê? Porque tentei, mantendo a minha identidade, adoptar o estilo de Gavine Rubro. Em suma, tentei ser Gavine. Quais os versos que são da minha autoria e quais os que são do Gavine não é a real questão, no meu entender, ao ler este poema. Aliás, não há questão alguma. Há um poema. Leiam-no.
Obrigado, Gavine.

Rudimentares prazeres
Utopias em enorme porção
Venenos viscosos para beberes
A letargia que urge pela sua decapitação...
A garganta que se abre, negra, abissal,
Até ao pulmão que respira e baforeja
O punho de fumo escrito no punhal
em sanguinolenta cor de cereja...

Da faringe, nas goelas, pelas gengivas
A bárbara degolação do plasma da procriação
De fomes, sedes, securas, magrezas
Como as avarezas das salivas superlativas sobre imitação…
E é no mimético decorrer da arte sobre a vida
que a vida se finge, plástica, sobre a tela;
Enquanto o corpo, cidadela de pedra construída,
em mil e um grãos de areia se esfarela...
Em areias conspurcadas na cinética da língua
A garganta abre-se num enigma rupestre
As poções, os vírus, doenças, seivas em capicua
E quem sabe o que já é feito da lúgubre peste...

20 março, 2010

Servidão Humana


Intenso brilho cegante
Conduz negros olhos crédulos
Por vasto mundo incessante
Sentido por dedos trémulos.

Em lânguido passo seguem,
Em longa fila indiana;
Severos lordes os regem,
Feliz cegueira humana...

Espreita o vate outro trilho...
"Silêncio!" silva o chicote!
"Não abras teus olhos a outro brilho
Ou verás tua morte"...

19 março, 2010

S/título


O corpo inerte e morto de Jesus
Sangrou, pingo a pingo, para um vaso
De onde beberam os anjos o ocaso
D'Aquele que nasceu pregado à cruz.

Ébrios, em cônsona mijadela,
Chuviscaram os anjos lá de cima
Cá para baixo: sacra obra-prima
Angelical, em jeito de procela.

E o sangue, na terra já entranhado
Atalha para a boca dos defuntos
Que vêem seu desejo saciado...

Entretanto, pelo sangue consuntos,
Dormitam os anjos, embriagados
- No céu, incestuosamente juntos...

18 março, 2010

Condutor Indiano


O sol queima e arrefece a lua
E a noite branca enegrece o dia.

Numa aldeia qualquer,
Dançam à volta de uma fogueira os habitantes locais:
Multidão assexuada em delírio selvagem.
Uma vaca mutilada vai dar à margem do rio.

Ateus e agnósticos, entrem no meu curato!

Oh, grande Marajá, vem e conduz-nos através da Índia!
O grande Marajá vai conduzir-nos através da Índia até Khali.

Oh, grande prostituta indiana,
Vem e conduz-nos através da tua Cama.

Sutra.

O Vento


Sopra o rude vento
Com seu bafo quente,
Em sofridas costas...
Ele marca o tempo,
Esse ser dormente,
Cruel, que anda às voltas...

Cegante, a poeira
Nos olhos se aloja,
- Tirana sem dó...
Pela estrada inteira
É o tempo que forja
As cinzas e o pó...

Aos ombros o mundo,
No peito a esperança
E chagas nas mãos...
A dor cala fundo
E grava a lembrança
Em corações vãos...

Liberdade


Pega na tua lâmina
E abre-me o peito;
Tira-me a pele,
Isso eu aceito;
Pune o meu corpo,
Fá-lo sangrar
Mas não me cortes as asas,
Deixa-me voar,
Deixa-me voar...

Primeiras Chuvas

Hoje inauguro um novo opus, intitulado Primeiras Chuvas, título que terá tanto de certo como de fortuito. Poderia ser Verdes Anos, Verdes Chuvas, Primeiras Raízes ou qualquer coisa que o valha. Ficou Primeiras Chuvas por isto: "primeiras" pois trata-se do conjunto dos primeiros textos que fixei no papel (entre os anos de 1992 e 1998, grosso modo), sendo que alguns outros entre esses anos e outros mais antes desses anos se perderam nas brumas da memória, os nunca escritos no papel, ou no esquecimento dos papéis perdidos nas mudanças de casa e nas mudanças de mim mesmo - ou por outras palavras: àqueles que entreguei ao fogo ou ao lixo; "chuvas" pois este termo liga estes proto-poemas, por assim dizer, àquela que foi a primeira aparição do Alexandre Homem Dual dentro dos universos (multiversos?) que eu delimito: no conjunto de textos com o nome "Amanhã Chovi".
Confesso que uma dúvida me assaltou: com que nome assinar? Alexandre Homem Dual ou Valter Ego? Mas uma vez que Valter Ego é o pseudónimo de Alexandre Homem Dual, um alterónimo da pessoa histórica e viva que sou eu (sou?), penso que o melhor é ser honesto e entregar-lhe a ele a autoria dos versos ainda tão verdes, ainda que ele na altura não existisse. Ou por outra, ele já existia, ainda que eu o desconhecesse...
Começarei por publicar o poema mais antigo que tenho: Liberdade. A data no caderno marca 1994. 16 anos passaram entretanto... Eu passei entretanto.
Despi-vos. E aceitai no vosso corpo nu as minhas primeiras chuvas...

17 março, 2010

Pub

DRACULEA Café Poesia.

Às terças à noite no DRACULEA* Café Bar (Rua Dr. Rodrigues Davim, 44, Faro)

*Domus Regia Artis, CULtus Et Amicorum

12 março, 2010

S/título

É nestas alturas que a sinto
já ali ao virar da esquina,
soberba, bubónica,
perspicaz, cancerífera,
apressada, chegando a destino tão incerto...
E tão cedo, tão cedo...
É nestas alturas que a sinto tão perto,
por mais longe que ela esteja.
É nestas alturas que lho concedo:
quando ela assim o quer, que assim o seja.

09 março, 2010

Natureza Morta: duas rolas e uma cabeça de carneiro


Sofregamente provava o maduro
Corpo com quem me encontrava a sós
(dois desconhecidos éramos nós,
dois desconhecidos num quarto escuro)...

No silêncio, ecoavam gemidos
Que lhe vinham das suas profundezas
Mais fundas, onde se encontravam presas
Suas arrulhadas, como balidos...

Eis-nos nos preliminares suados
Quando, súbito, lhe dá um chilique.
Fico automaticamente em cuidados!

Sofrerá de uma maleita maligna?
Só muito depois me apercebi que...
Coitada, sofria de borborigma!

04 março, 2010

S/título


Maria Madalena, a contrita,

No confessionário ajoelhada,

Tenta expiar-se mas não vê purgada

A sua natureza sibarita.


Ecoando o que lhe pregam, recita

Nove ave marias, seis padre nossos,

Enquanto dedos gordos e grossos

Lhe ascendem o vestidinho de chita...


Ora, hora após hora, mil suspiros

Que ressoam na nave à meia-luz,

Fazendo luzir-lhe os seios: diospiros


Maduros nas mãos do senhor abade.

Travessa, espia a efígie de Jesus...

Juro ouvir-lhe um riso à Marquês de Sade...

S/título


Despida do seu capucho escarlate,

A jovem rodava à vez, sem pudor,

Por cem cães pretos como chocolate.

Danado, fiz-me seu interlocutor:


"Caterva de cães pretos e peludos,

Porque a vós, entre vós, não fornicais?

Matilha de cães cunilinguarudos,

Optais p'los castos, não p'los bestiais?"


Desapareceram como foguetes

No meio da floresta os vejetes

Vazados, prenhes, fartos, saciados.


Deixaram-lhe o capuchinho em farrapos...

E abandonada a boneca de trapos

Rasgados, polutos, ensanguentados...

Afrodite da Ria Formosa


Ei-la, Afrodite da Ria Formosa,

Banhando seu corpo belo e nu,

Lavando as coxas, as mamas e o cu

Na lentidão lasciva e langorosa


De quem possui todo o tempo do mundo

Para com paciência e com nexo

Dominar esse mundo pelo sexo

Num festim licencioso e imundo.


Sai da água, deusa de sensualidade,

Molhada sem um pingo de pudor,

Sorrindo à devassa humanidade.


Seu único desejo é, sem malícia,

Amancebar-se e fazer amor

Em lençóis de seda e de sevícia…

02 março, 2010

Colinas

Antes do Barranco de Água Velha

Há um lugar

Onde as colinas se erguem

Como seios descobertos

Avidamente

Saciando a sua fome de sexo.

Entregam-se ao céu

Cor de lençóis de seda azul

Trazida pela Rota da China

Como o céu tivesse

Lábios e línguas mil

Que as pudessem beijar

E chupar de dentro de si

O leite primordial que,

Desde sempre,

Lhes corre

Subterrâneo…