31 julho, 2009

Pelagus (XXXI)


Fôssemos filhos de um deus
Omni-
...._._-presente
...._._-sciente
...._._-potente
E seríamos sempre abraçados com a terra
Acachapados à sua vontade paterna.

28 julho, 2009

agora


pelo lento andar do gato vadio na relva fresca
caçando pombos ou pardais certamente
e pela forma como o sol ainda se esconde
por trás dos prédios à minha esquerda
posso deduzir que ainda é relativamente cedo
o gato acordou com fome depois de algumas
horas de sono poucas que a noite foi preenchida
com outras caçadas e agora busca alimento agora
que os pássaros ainda estão encadeados pela luz
matutina
tudo agora deveria ser então claro para mim
é manhã cedo e este é o meu primeiro poema do dia
mas nada é claro nem quando iluminado pela luz
matutina
a folha que deveria ser branca está escurecida
por palavras já escritas e gastas no seu reverso
para além disso o café deixou-me um travo amargo
na boca e o café da manhã das minhas manhãs é sempre doce
devo então deduzir que já não é tão cedo agora quanto
eu gostaria e que na verdade esta é
a minha hora de morrer
agora
amanhã será outro dia veremos se o gato que certamente
voltará para caçar mais pardais ou pombos
me verá aqui outra vez sentado sentindo o vento
soprando por entre as páginas das árvores e as folhas de papel

26 julho, 2009

demónios


hoje pintei a minha cara de branco e os lábios de
vermelho carmesim sombreei os olhos com rímel preto
e penteei o cabelo para trás usando os dedos
encharcados de tinta do sangue que corre nas
esferográficas deitadas nuas sobre a minha
secretária se eu a tivesse
............................................não é mentira
para pintar e para escrever nada mais uso
que os dedos e a língua e a imaginação
mas é verdade que hoje pintei a cara de branco
e os lábios de vermelho carmesim e que
sombreei os olhos com rímel preto e que
penteei o cabelo para trás depois ou antes
que importa olhei o espelho e vi reflectidos
sobre mim projectados no branco rugoso
da minha cara pantalha os demónios que desde sempre
me perseguem espantalhos de carne e osso mas
sem coração de asas estendidas num lago de baba
e saliva e fluídos seminais e vaginais
depois ou antes que importa limpei a alma
com um cálice de vinho tinto que sobrara
da noite anterior o tempo um dia para ser mais preciso
fizera crescer no líquido um doce aroma a morte e a solidão
limpei a alma
novamente e novamente e novamente e novamente e novamente
e sempre de um modo novo pela primeira vez
até que as rugas sangrassem e até que os meus
demónios adormecessem depois deitei-me a seu lado
e promiscuamente deitei a cabeça sobre o ombro de todos eles

14 julho, 2009

As Ninfas



Por seis vezes mergulham seis damas
Num lago, às seis matinais horas.
Os lábios e os mamilos, como amoras,
Ruborescem-lhes as caras e as mamas


Brancas, banhadas em leite divino.
Sussurram-me as folhas do arvoredo
Que elas são filhas da Dor, mães do Medo,
Concubinas de um Príncipe malino...

Riem-se as virgens e os que nelas se fiam
Em palavras lânguidas e laivosas
- Tanto quanto as bocas que as pronunciam.

Vive o mito pois o mito é eterno;
Morro eu nos braços de maravilhosas
Ninfas maníacas, pêgas do inferno!



*Fotografia de
Úrsula Mestre (da série "Ninfas")

Ode à Música


Música, Maestro:

Cala o silêncio escuro da solitária madrugada que,
Lânguida,
Se aproxima do profundo âmago da Noite
Com a sua lasciva língua bifurcada.
As sombras são sons que se projectam no teatro do tecto
E nas paredes brancas (negro o tecto e estelífero – negro e brilhante
Como um disco de vinil), demónios dançando nas horas vagas, memórias
Como serpentes enroscando-se nas coxas surdas de Beethoven…

Música, Maestro…
Deixa-me cheirar a terra em que te deitaste e em que plantaste
As vinhas da tua sétima sinfonia; espremer-te os cachos rubis como espremesse
Sons para dentro da tua boca e pintar-te os dentes de vermelho – oh sim,
Os teus famélicos caninos também…

Renunciemos a todas as máscaras que as vozes da vergonha
Nos escondem sobre o rosto – um sorriso suspirado no silêncio da noite
E cônsono com o teu orgasmo (allegro ma non molto) não seria mais precioso
Que mil brindes à paz entre os homens?

Música, Maestro!
Traz-me guerra e clarões de bombas a rebentar, se esse é o teu desejo!
Traz-me o estertor dos moribundos e das civilizações do passado
– E das do futuro!
Traz-me a voz silente dos poetas e os gemidos bastardos das virgens que se sentam
Sobre o falo erecto do seu Deus!
Traz-me o sossegado som dos riachos pueris e a fúria incestuosa de Neptuno
Abocanhando as lácteas tetas de Tétis Prostiputa, bebendo-a de um trago só!
Traz-me o choro do mundo a acabar, o ribombar dos canhões e dos filhos
Da guerra que perecem como mastros quebrados no pélago da nossa apatia!
Traz-me o som do petróleo correndo-nos livre pelas veias…

Ou simplesmente ensina-me a dizer “Amo-te” sem palavras…

E as estrelas liquescentes dissolvem-se lentamente
A caminho do chão viajando pelas paredes e pelo
Espaço esvaziado de vazio, o espaço prenhe de música…
Pouco a pouco, todas as estrelas se reúnem num grande sol,
Um sol vermelho, uma poça gigantesca formada a meus pés,
Primeiro tocando-me os calcanhares, depois
Os dedos, agora já os tornozelos…

(Uma sensação de frialdade tépida quebra-me
As tibias, palitos que me mantêm as pálpebras abertas…)

(E os olhos fecham-se…)

Traz-me, Maestro, o som das minhas suadas coxas entrelaçadas nas coxas surdas de Beethoven,
Uma nota acima do sangue e do sémen e da música (que num líquido e orquestrado beijo
Trocam espuma e saliva) que me dão já pelos joelhos…
E de tanto rodar o vinílico círculo, a agulha rompe o hímen do tempo e trespassa
O coração de Beethoven.
Eis que finalmente o seu ouvinte e amante percorre as notas do silêncio e,
Olhando para o chão, grita:

Música, Maelström!