31 janeiro, 2009

Botão a botão

Botão a botão, o tempo é desabotoado
Nesse teu corpo de flanela
Onde embrulhado e quieto,
Muito quieto, te vejo dançar à volta do espelho
Iluminado pelo ecrã de cinema.
Os teus gestos são ora lentos ora rápidos
Mas sempre silenciosos como se o vento parasse
De soprar no exacto momento em que as folhas
Avermelhadas pelo bafejo do Outono e caídas no chão,
Junto aos teus pés, se levantassem,
Como que renunciando à escuridão do Inverno por vir
E almejando voltar aos galhos da árvore
De onde caíram. De volta à Primavera, longe
Do tempo linear.
O meu coração é um relógio avariado
Avançando para trás no tempo, em busca da hora certa em que te
________________________________________[conheci
E em que te amei.
E quando os primeiros raios de luz pintarem o horizonte do
_________________________________[solstício de Verão
Vou simplesmente dizer-te
Boa noite...


Inspirado pelo filme "The Curious Case of Benjamin Button"

29 janeiro, 2009

O Presidente


O Presidente, nas suas conferências de imprensa, repetia sempre que desde pequeno dizia ao pai que se o mundo fosse como ele o sonhava, poderia não ser o melhor dos mundos mas seria, com toda a certeza, um mundo melhor. Um dia, ao mandar invadir um país longínquo em nome da liberdade percebeu, não sem uma ponta de cinismo, que não poderia jamais mudar o mundo mas que o mundo o tinha mudado a ele.

Pelagus (IX)


Ainda são vivos
Os velhos Velhos do Restelo
Na zona que cobre e descobre
Fazendo navegação à cabotagem.
E as suas palavras podem ser ouvidas
Porque às vezes eles lançam-nas ao vento
E nas noites de ventos contrários elas andam no espaço à deriva
Incapazes de navegar à bolina.

Pelagus (VIII)


Aceso o navio,
Projectam-se no espaço sem rugas
Os dedos e as mãos que outrora
Saborearam o mar
Mas que agora,
De água no bico,
Zarpam para alcançar o infinitesimal
Quinhão
Da vontade humana
Sem Rei nem formão.

Pelagus (VII)


Descobri o tempo e a ausência dele
Na pele branca
De uma brancura clara de ovo
Quando embarquei
De olhar cândido e novo
No seu corpo nocturno e viajei
Com a ponta dos dedos
Seguindo a direcção das veias que quase brilhavam
Como estrelas através do seu corpo translúcido.
E a manhã trouxe a sua luz
A reflectir-se no cabelo loiro
Supernova explosão nas retinas encandeadas da minha saudade,
Como velas cheias de vento.
E encontrei deus ou a sua ausência
Na alma
Para lá do azul celeste dos seus olhos
Que pingavam lágrimas com sabor a mar
Quando nos fitámos sem pestanejar
Durante mil anos-luz.
E para lá do azul celeste dos seus olhos
Contemplei o vazio
Como uma auto-estrada sobre um mar negro
Desembocando no desconhecido.

26 janeiro, 2009

Saudade

Meu amor partiu para ver o mundo:
Seguiu o sol, foi para o Oriente,
Conheceu novos povos e viu gente
Estrangeira, de espírito fecundo.

De lá, foi para o Negro Continente,
Viajou do Cairo até ao Bailundo
E viu magia, crédito profundo
De várias tribos, de credo dif’rente.

Partiu desafiando o mar azul,
Aventurou-se na América-Sul
Tentando encontrar a felicidade…

Mas cortando o Atlântico Oceano
Regressou ao cantinho lusitano
Por lusa ser a palavra Saudade…

22 janeiro, 2009

Memórias do Alentejo


Um certo dia que por lá passei
Podia ter aberto os maxilares
E de uma vez
Engolido
Aquele oceano de feno, palha e trigo,
Só para levar o sabor do Alentejo na boca.
Mas não o fiz e não me arrependo.
Limitei-me a observar
E com o olhar
As suas cores fui comendo.
Hoje em dia,
Para me lembrar,
Enterro as mãos na memória
E lambo os dedos…

19 janeiro, 2009

5 Possíveis Teorias do Cristianismo


(i) Nasceu. Morreu. Pelo meio houve uma cruz.
(ii) Nasceu? Morreu. Pelo meio houve uma cruz.
(iii) Nasceu. Morreu? Pelo meio houve uma cruz.
(iv) Nasceu? Morreu? Pelo meio houve uma cruz.
(v) Nasceu. Morreu. Pelo meio houve uma cruz?

La-bi-rin-to


La-bi-rin-to:
Quatro sílabas que per-
corro, des-
canso,
Me perco
E sou só eu
Quando eu a mim
Me minto...

15 janeiro, 2009

Sansão e Dalila


Enquanto ele dormia, a traidora
Castrou sua trança pela calada
Com uma velha adaga enferrujada
E espalhou-a pela cúmplice aurora.

Ao acordar, sentindo-se impotente,
Tentou juntar todas as suas forças
P'ra afastar as colunares e grossas
Coxas da amante leoa fremente.

Mas a lâmina foi-lhe ao coração,
Nem sangue tem nas veias, é mercúrio
Morno que rasga o corpo de Sansão.

Mas Dalila, a de cabelo purpúreo,
Ri-se ante o inútil esforço vão
Do corpo quebrado do amante espúrio.

13 janeiro, 2009

O Riacho


Claríssimo o riacho despeja cochichos
Em consonância com o sussurro dos bichos
Que bebido a vida
Têm nas suas águas desde tempos idos
No linguarejar corrente da cristalina
Viagem dos sentidos.

10 janeiro, 2009

S/título


Cai-lhe o céu na pele candial
Como se os deuses tentassem tocá-la,
Perfeita na perfídia virginal,
Sua silhueta por si só fala.

Vista do alto, é rainha na terra,
Cabelo carmesim, pele marmórea,
A lascívia que o seu olhar encerra
Neva uma linguagem incorpórea.

Fala aos corações de deuses e homens,
Sedu-los da sua corte gelada,
Deixa-os entrar e mantém-nos reféns
Numa cama de camélias deitada.

08 janeiro, 2009

S/título


O violoncelar lânguido da tua voz
Embala a tepidez do amor
Que nos une em promessas de eternidade.
Mas é a união animal que te quero
Num momento de desembaraço
E de vontade.

S/título


Um cristalino rumorejar de lágrimas secadas ao vento
Deixam no rosto celeste rasto gravado
Como se rugas tivessem sido esculpidas no céu
Pelas mãos frágeis e fracas de uma criança sem idade
E pela sua ingénua e enorme ânsia de desafio à gravidade
Apenas com um papagaio de papel que o avô lhe construiu.
Mas neste mundo…
Onde as crianças?
Onde os avós?
Onde os papagaios?
Onde os sonhos?
Tudo ruiu?