06 novembro, 2009

anjo com boca de palhaço


ao sabor de algodão doce e ao som de trompetas feéricas
contemplei um bando de brancos cisnes caindo do céu em uníssono
numa chuva de penas sorrindo sobre a cabeça das crianças da noite
adormecido o vento repousava dormente na garganta
dos lobos que aguardavam em silêncio sobre a líquida superfície
da terra pela chegada dos cadáveres das aves solidi
ficando à espera como sangue seco na pelagem negra
e nos dentes brancos brancos como os cisnes
os lobos aguardam os olhos amarelados para o céu revirados
as mandíbulas abertas e pingando baba os ácidos estomacais a trabalhar
aguardam os lobos pelo voo dos cisnes
as almas dos lobos empaladas nos corpos dos ciprestes
e o som metálico do movimento de um carrossel pelas sombras iluminado
começou a ganir a chorar a ranger a uivar
enquanto ali me prostrei eu os joelhos já em sangue na lama
onde archotes eléctricos desbravam a escuridão com mil cores
e descobrem a cabeça de um anjo maquilhado com boca de palhaço
andando à volta em revolta e em reviravolta num carrossel de horrores

21 outubro, 2009

Made of...


Sou feito de
Carne,
Pele,
Ossos,
Poros,
Sangue.

Sou feito de
Ideias que devoro
E regurgito
Até estar morto,
Exangue.

A minha língua é
O porto onde me
Ancoro.
E de onde mergulho
Para me achar
No perder-me.

Tudo o que produzo
O meu corpo expulsa,
Nada me fica.

Palavra nova,
Velho verbo,
Sentimento,
Filosofia,
Poesia,
Excremento,
Suspiro,
Orgasmo,
Lamento,
Nada me fica.

Até o meu coração o escrevi aos filisteus.
E nem os meus versos são realmente meus.

Da Teoria Poética

Não tenho, ao contrário de outros muitos, uma teoria literária ou sequer uma poética. Para mim, escrever é um acto semelhante aos actos de comer, beber, cagar: uma necessidade fisiológica. Talvez a minha merda cheire um pouco pior do que a desses muitos outros. Talvez. Mas não deixa de ser merda. A minha e a deles.

20 outubro, 2009

S/título


Dizem que Abel caiu ao pés de Caim,
Qual mártir e fratricida unidos pelo sangue derramado.
E que Caim foi filho da Malvada Serpente que nos tentou a todos.
Tentou e conseguiu…
Mas ele vive na ponta dos esquálidos dedos do Mago
Que sara a pútrida gangrena dos olhos que o observam
– E que o vêem! Sara o Mago
Abrindo feridas com cuspo fechadas, fachadas
Com lágrimas e pus pintadas;
Rasgando as folhas da Árvore Primordial à incestuosa sombra
Da qual Adão e Eva se habituaram a deitar
(Ah, sim, a Humanidade é um animal de hábitos,
Hábitos sob os quais se escondem terríveis segredos,
Como falsos falos pingando salmos e recitando sémen);
Dançando sobre as falhas tectónicas do Paraíso Celestial.
Aos pés de quem cairemos nós? Eu escolho não perecer
Esmagado por titãs de pés de barro. Vem, Mago, lambe
E sara as nossas feridas…

07 outubro, 2009

S/título


Ali jaz um sorriso, construído no perfil
Da sombra dos ciprestes, retalhado sob os escombros
Da Torre que te tomei no tabuleiro alvi-ébano
Que as estrelas alumiaram no interior do teu ventre.
Ali jazo eu, como um joker
Fora do baralho, de sorriso esculpido a pedra e a rugas
E imerso num mar de baton rouge... e a lua outonal,
Branca como cristal, reluz
Na pele da tua barriga e das tuas ancas, que sinuosamente
Me chamam a trilhar o caminho das tuas coxas brancas...
No início da jornada, todas as jogadas poderiam
Ser ponderadas e todos os gestos ensaiados. Mas no final,
O que nos resta para lá do momento?
Jogadores somos e sonhadores nós
Os das palavras vãs e dos utópicos amanhãs...
Mas não é a utopia uma mera actriz num teatro onírico?
Uma tétrica meretriz aprendiz de um orgasmo empírico?

A Eterna Inseparabilidade dos Amantes


Sentada no trono da madrugada
Enrola-se no corpo do seu escravo e amante
Que a aquece
E lhe cheira os cabelos que lembram o nocturno mar…
Sabe-se dona do mundo e das suas eras,
Sabe que nada nem ninguém os poderá separar,
Nunca nesta vida ou na próxima,
Homens ou feras…

30 setembro, 2009

Paisagem: mulher negra (de lábios pintados) fazendo cachupa


Observada à lupa,
Jô, preta do sol,
Lábios cor de amora,
Quando faz cachupa,
Fingirá que engole
Ou cospe p'ra fora?

S/título


Canta, como pegadas invisíveis insonoras,
O canto revelado pela borda do cântaro,
Impressões digitais na fina pele da chuva.
Conta, como quem canta aos lobos para adormecê-los,
Os escalpes dos carneirinhos,
Sanguinolentos-lentos-lentos na sua ainda mais lentíssima hecatombe…
Disseram-me uma vez que a madrugada seria branca e que
Cheiraria, promessas vagas e imprecisas com sabor a rúcula,
Ao azedum do leite derramado nas costas do poema e que,
Escorrendo, se veio a depositar, coalhado,
No espaço sideral entre os teus dentes…
Quando olho a vagina emoldurada pelas tuas alvas coxas
(Brancas como a madrugada que me foi prometida)
E suculentas-lentas-lentas no seu lentíssimo entreabrir de pernas,
Sei cheirar o suor que derramámos amanhã sobre as sílabas
Arrancadas à carne como roupas gentilmente violadas.
Não sei onde caíram os botões que saltaram da tua camisa, dizes-me,
(talvez estejam por entre os lençóis da cama)
Mas acabas por sorrir em silêncio quando o cantarolar
Da chuva batendo no meu peito abafa o cântico da tua poesia…

2:3:666


Exauridas as fórmulas antigas
Do pensar grego e da moral cristã
A hora é de clamar a Manhã,
A Luz que junta hostes inimigas.

Nova moral deverá ser forjada
(Um pensar novo será erigido!)
E um luminoso facho ser trazido
Pelo Anjo da Manhã anunciada…

De ter um Pai porém chorar sozinho
Está o mundo farto mas agora
Vem quem lhe descobrirá o sorriso.

Ó mundo, quem te alumia o caminho?
Quem te urge a decidir que é esta a hora
De semear o infértil Paraíso?

23 setembro, 2009

S/título


no fundo do faro há-de nascer um cão
cujo pêlo tem o cheiro da terra molhada
num dia de chuva de verão
as folhas hão-de cair como pulgas deicidas
mártires vampíricos esperando a hora da fatídica (in)decisão

nisto

os cães ladram e a caravana
.........................................tres-
..................................................-passa o coração
dos que nunca viajaram para lá da rota
traçada pelos seus pés

e entre tantos
cães
a caravana passa mas não despercebida
só a não viu quem não quiser gritar que
o entretanto é a hora anunciada

21 setembro, 2009

S/título


Reflexo o abismo na monotonia latente
Dos olhos que se escondem por detrás dos teus fantasmas.
Não suspiram nem se entregam num derradeiro estertor
As meninas dos teus sonhos, como
Pupilas deserdadas e bastardas procurando o trilho claro
Da Ciência na obscuridade dos teus sonhos.
Os teus sonhos ai os meus sonhos...

Fechas os ouvidos à Verdade que te mente na palma da mão
Enrugada enquanto abres as pernas à Mentira que te
Seduz dançando nas sombras da luz da madrugada...

Seios as colinas que toco as meninas dos teus sonhos,
Sei-os, sei-os de cor.............(aos teus sonhos...)

Lobos brincando, como ovelhas negras, albinos,
Na fronteira do matricídio e do incesto...
(eis a matilha marchando pintalgada de vermelho
(eis que o hímen se rompeu
(eis que o uivo surge pintalgado de vermelho)

Vem-me.
Come-te e cospe-nos para fora do seu leito.

13 setembro, 2009

Cortar as Vazas


Vazei-me
A mim de sangue.
Vazei-me
A ti de amor.
Vazei-me a nós e ao sonho que foi nosso
De uma casa branca com um jardim
Outrora verde, hoje sem cor.
Vazei-me como quem vazasse
O velho frigorífico que a velha senhoria fez o favor
De incluir na renda
E que estava cheio de garrafas de cerveja vazias
Que eu voltei a encher com o meu sangue.
No congelador, havia ainda uma garrafa de vodca
Por estrear.
Tirei-a e atirei-a
Para debaixo da cama e enchi-o (o congelador)
Com a tua cabeça cortada – pura expressão do teu horror…

07 setembro, 2009

S/título


Parei no equilíbrio
Malabarista
Bruto dos braços
Nas barras paralelas
Das tuas anáforas,
Amiga.
Parei para te escutar
E beber o lago das tuas cântaras
E mergulhar nas tuas coplas
E mergulhar no dístico olhar
Da tua cantiga.

01 setembro, 2009

S/título


O sabor amarelo e verde
Dos limões
Misturado com o cheiro azedo
Das mãos
Que espremeram os limões
Tempera a língua dos que provaram
Gota-a-gota
Ao que sabia a raiz ácida do limoeiro.

28 agosto, 2009

S/título


É na noite que oriento, crepuscular,
A direcção do facho que ilumina
A labiríntica escuridão
Da mente que me mente
E que se esfinge luciferina
Em versos de trovejantes marés
Dos grotescos
Egos que apertam o silencioso
Eco da minha garganta…

24 agosto, 2009

Pelagus (XXXII - último poema)


Há uma árvore que é uma floresta
No planeta a que dei o meu nome,
Uma árvore com raízes de espuma
E de sal
Com folhas que são cascos naufragados
E outras que são cascas de búzios ocas
Onde se pode ouvir o som do vento
Por entre a folhagem do mar.
E se a subires até à copa
Podes ver, ao longe,
Perto do horizonte,
Na leiva,
O corpo nu dos búzios
A sonhar.

19 agosto, 2009

S/título


Ao fim do caminho
A estrada um dia pára
E na encruzilhada
Sozinho
Escolhe um homem a sua cara.

31 julho, 2009

Pelagus (XXXI)


Fôssemos filhos de um deus
Omni-
...._._-presente
...._._-sciente
...._._-potente
E seríamos sempre abraçados com a terra
Acachapados à sua vontade paterna.

28 julho, 2009

agora


pelo lento andar do gato vadio na relva fresca
caçando pombos ou pardais certamente
e pela forma como o sol ainda se esconde
por trás dos prédios à minha esquerda
posso deduzir que ainda é relativamente cedo
o gato acordou com fome depois de algumas
horas de sono poucas que a noite foi preenchida
com outras caçadas e agora busca alimento agora
que os pássaros ainda estão encadeados pela luz
matutina
tudo agora deveria ser então claro para mim
é manhã cedo e este é o meu primeiro poema do dia
mas nada é claro nem quando iluminado pela luz
matutina
a folha que deveria ser branca está escurecida
por palavras já escritas e gastas no seu reverso
para além disso o café deixou-me um travo amargo
na boca e o café da manhã das minhas manhãs é sempre doce
devo então deduzir que já não é tão cedo agora quanto
eu gostaria e que na verdade esta é
a minha hora de morrer
agora
amanhã será outro dia veremos se o gato que certamente
voltará para caçar mais pardais ou pombos
me verá aqui outra vez sentado sentindo o vento
soprando por entre as páginas das árvores e as folhas de papel

26 julho, 2009

demónios


hoje pintei a minha cara de branco e os lábios de
vermelho carmesim sombreei os olhos com rímel preto
e penteei o cabelo para trás usando os dedos
encharcados de tinta do sangue que corre nas
esferográficas deitadas nuas sobre a minha
secretária se eu a tivesse
............................................não é mentira
para pintar e para escrever nada mais uso
que os dedos e a língua e a imaginação
mas é verdade que hoje pintei a cara de branco
e os lábios de vermelho carmesim e que
sombreei os olhos com rímel preto e que
penteei o cabelo para trás depois ou antes
que importa olhei o espelho e vi reflectidos
sobre mim projectados no branco rugoso
da minha cara pantalha os demónios que desde sempre
me perseguem espantalhos de carne e osso mas
sem coração de asas estendidas num lago de baba
e saliva e fluídos seminais e vaginais
depois ou antes que importa limpei a alma
com um cálice de vinho tinto que sobrara
da noite anterior o tempo um dia para ser mais preciso
fizera crescer no líquido um doce aroma a morte e a solidão
limpei a alma
novamente e novamente e novamente e novamente e novamente
e sempre de um modo novo pela primeira vez
até que as rugas sangrassem e até que os meus
demónios adormecessem depois deitei-me a seu lado
e promiscuamente deitei a cabeça sobre o ombro de todos eles

14 julho, 2009

As Ninfas



Por seis vezes mergulham seis damas
Num lago, às seis matinais horas.
Os lábios e os mamilos, como amoras,
Ruborescem-lhes as caras e as mamas


Brancas, banhadas em leite divino.
Sussurram-me as folhas do arvoredo
Que elas são filhas da Dor, mães do Medo,
Concubinas de um Príncipe malino...

Riem-se as virgens e os que nelas se fiam
Em palavras lânguidas e laivosas
- Tanto quanto as bocas que as pronunciam.

Vive o mito pois o mito é eterno;
Morro eu nos braços de maravilhosas
Ninfas maníacas, pêgas do inferno!



*Fotografia de
Úrsula Mestre (da série "Ninfas")

Ode à Música


Música, Maestro:

Cala o silêncio escuro da solitária madrugada que,
Lânguida,
Se aproxima do profundo âmago da Noite
Com a sua lasciva língua bifurcada.
As sombras são sons que se projectam no teatro do tecto
E nas paredes brancas (negro o tecto e estelífero – negro e brilhante
Como um disco de vinil), demónios dançando nas horas vagas, memórias
Como serpentes enroscando-se nas coxas surdas de Beethoven…

Música, Maestro…
Deixa-me cheirar a terra em que te deitaste e em que plantaste
As vinhas da tua sétima sinfonia; espremer-te os cachos rubis como espremesse
Sons para dentro da tua boca e pintar-te os dentes de vermelho – oh sim,
Os teus famélicos caninos também…

Renunciemos a todas as máscaras que as vozes da vergonha
Nos escondem sobre o rosto – um sorriso suspirado no silêncio da noite
E cônsono com o teu orgasmo (allegro ma non molto) não seria mais precioso
Que mil brindes à paz entre os homens?

Música, Maestro!
Traz-me guerra e clarões de bombas a rebentar, se esse é o teu desejo!
Traz-me o estertor dos moribundos e das civilizações do passado
– E das do futuro!
Traz-me a voz silente dos poetas e os gemidos bastardos das virgens que se sentam
Sobre o falo erecto do seu Deus!
Traz-me o sossegado som dos riachos pueris e a fúria incestuosa de Neptuno
Abocanhando as lácteas tetas de Tétis Prostiputa, bebendo-a de um trago só!
Traz-me o choro do mundo a acabar, o ribombar dos canhões e dos filhos
Da guerra que perecem como mastros quebrados no pélago da nossa apatia!
Traz-me o som do petróleo correndo-nos livre pelas veias…

Ou simplesmente ensina-me a dizer “Amo-te” sem palavras…

E as estrelas liquescentes dissolvem-se lentamente
A caminho do chão viajando pelas paredes e pelo
Espaço esvaziado de vazio, o espaço prenhe de música…
Pouco a pouco, todas as estrelas se reúnem num grande sol,
Um sol vermelho, uma poça gigantesca formada a meus pés,
Primeiro tocando-me os calcanhares, depois
Os dedos, agora já os tornozelos…

(Uma sensação de frialdade tépida quebra-me
As tibias, palitos que me mantêm as pálpebras abertas…)

(E os olhos fecham-se…)

Traz-me, Maestro, o som das minhas suadas coxas entrelaçadas nas coxas surdas de Beethoven,
Uma nota acima do sangue e do sémen e da música (que num líquido e orquestrado beijo
Trocam espuma e saliva) que me dão já pelos joelhos…
E de tanto rodar o vinílico círculo, a agulha rompe o hímen do tempo e trespassa
O coração de Beethoven.
Eis que finalmente o seu ouvinte e amante percorre as notas do silêncio e,
Olhando para o chão, grita:

Música, Maelström!

23 junho, 2009

Rei Édipo


A Rei Édipo de órbitas vazias
Assalta todas as noites um sonho:
Olha-se a si com um olhar medonho,
Em vez de olhos, duas fotografias.

Arrancados, no chão, têm gravados,
Na retina, dois momentos brutais…
Num, o filho matando o seu pai,
Noutro, o filho com a mãe deitado.

Assim, patricida e incestuoso,
A si próprio Édipo se cegou…
Qual dos vis actos o mais vergonhoso:

Derramar o sangue que o criou
Ou seduzir a mãe que, anjo, casta,
Foi puta na hora de dizer basta?...

03 junho, 2009

as palmas


incerta e titubeante a luz começa por trémula
encher amarela e líquida timidamente a lâmpada
como se o medo de se mostrar aos olhos da escuridão
fosse acima de tudo uma questão de vida ou morte
num segundo momento a luz agora já lasciva e sensual
apodera-se de todos os recantos da sala onde
no seio da escuridão os dois corpos contra–
–acenam
.................parado o dela
.................só os olhos se movimentam
.............._deixando antever a brancura das órbitas
.............._mexendo-se o dele
................deixando espreitar-se a brancura das nádegas
e eis que a luz possui total completa e despudoramente
a plenitude da sala deixando antever a vermelhidão
do pano que no final do espectáculo haverá de cair
quando uma mancha de sangue cobrir finalmente todo o cenário
a luz iluminará o corpo das palmas que o público
freneticamente bate
.......................................................................onanista

02 junho, 2009

Pelagus (XXX)


A viagem já não será redonda,
Nunca mais.
Assim, renuncio a forçar o tempo
_________...._a regressar a casa,
Entrego-me moribundo no espaço
Às marés quentes do teu regaço
Onde o galear das ondas convida
A aceitar o prazer do amor
.............................._e da morte
No horizonte obscuro do teu olhar
Repleto de vida.

28 maio, 2009

águas passadas


depois de esquecidas as palavras depois
dos corpos sucumbirem ao cansaço do
plenilúnio líquido das promessas falsas
como juraria eu amar-te se sempre
te amei em silêncio o molhado silêncio
depois do sol se pôr na porvindoura maré
que te depositou aos pés os lençóis
mudos de silêncio o molhado silêncio
teia construída pelo cantar dos búzios
ou seriam ostras que me deste a provar
à preia-luar junto as mãos abertas em
forma de concha e sonho lagoas onde
te sopro as velas pandas os olhos líquidos
escutando-te as orações arrependidas
e esfoladas de um céu aquífero pelos
teus joelhos suportado de sereia
no final depois do molhado silêncio o suor
dos corpos que encharcaram camas as lágrimas
que secaram ribeiros as palavras que
molharam o silêncio apenas resta o cheiro
a terra húmida e a águas paradas




Poema publicado originalmente no blog Porosidade Etérea

27 maio, 2009

Link para um dos dias mais felizes da minha vida!

Auto-Retrato


Uma vez inventei um homem que sonhava
Estar à porta de uma casa sem paredes.
Mas não pude resistir à curiosidade
De espreitar pelo buraco da fechadura.

24 maio, 2009

S/título


Há algo de canibalesco no meu olhar,
Algo de incontrolável abrindo
As suas terríveis mandíbulas
E cerrando as suas presas em cada verso
De cada poema que se perde
No abismo dos meus olhos.
E sinto as íris salivando-se
À medida que os meus dentes
Trituram os sons e o seu esqueleto
Até restar nada mais que o pó
Soprado pelos lábios contraídos em forma de O
Do poeta que antropofagi.

22 maio, 2009

S/título


A sombra projectada na parede suja
E caiada
Tisna a face da aldeia
Perdida algures entre a serra algarvia
Ou a planície alentejana.
Não é o local que importa,
É sim o frágil fio que suporta
No vazio
A identidade obliterada de uma face respirando vida
Mas que, sendo pétrea, se esfinge morta.

20 maio, 2009

"7 Poemas, Uma Vida" (versão completa)

Terminada a publicação do último poema do conjunto "7 Poemas, Uma Vida", composto precisamente por sete textos, procedo à sua publicação integral na outra face do Amendual (aqui).

7 Poemas, Uma Vida (VII)


Vejo-o no vazio,
Sinto-o na ausência,
Sombra saltando na sombra,
Nas sombras se movendo
Elegante,
Felino,
No silêncio da memória que o não esquece
Fora da moldura incapaz de o prender
No espaço
Ou no tempo…
Ouço-o com a pele
Arrepiada ao som das suas pegadas
De rei-caçador
Farejando a sua presa imóvel,
Invisível – quão invisível –
Inexistente excepto no odor a brincadeira
Que o dançar serpenteante do seu rabo denuncia…
Sinto-o na ausência
Nos cantos escuros da casa que foi sua
E da memória que o não esquece…
Tenho-o comigo
Aconchegado no coração
Como aconchegado estava da primeira vez
Que escolheu para sua cama o meu colo
E fez da minha pele e da minha carne
A pele e a carne suas
Amassando pão com as garras afiadíssimas
Na pele e na carne nossas.
A minha alma cheirou as janeiras,
Deixou-me com as memórias e o fio de juta
E não sei se alguma vez irá voltar…

7 Poemas, Uma Vida (VI)


À janela olha,
Observador,
O mundo como se desenrola
Perante seus olhos de gato-menino
Farto do conforto do quarto
Curioso de aprender o que não sabe.
Da esquerda para a direita, uma senhora
E um senhor, lado a lado, sem conversar;
E no sentido inverso, duas crianças a brincar;
Atrás de um carro estacionado um cão
E os carros na estrada passam sem parar,
Dia e noite…
Dia após dia…
Noite após noite…
Semana após semana…
Mês após mês…
Ano após ano…
Nuvem após nuvem, ora secas ora carregadas de água,
Ah como gostaria de se molhar e de fugir à chuva!
Sol após sol, ora tapado ora descoberto,
Ah como gostaria de sentir a luz quente na pelagem!
Vida após vida…
E o gato-menino
Um dia descobre
O seu reflexo no portal vítreo
Que reflecte o reflexo do seu olhar felídeo
Onde se reflecte assanhada a sua alma:
O gato-menino é já gato-velho,
Tem o pêlo gasto e a alma assanhada
Domesticada…
E o gato, menino velho, velho menino, gato!,
Vira as costas à janela,
Vai beber leite na sua tigela
E procura um sítio escuro para dormir
Em silêncio…

14 maio, 2009

7 Poemas, Uma Vida (V)


O miau abre
Sensual e furtivamente
A sua boca sem fundo
Enquanto o pobre piu-piu
Se entrega a um tango
Sem movimento
Tendo por parceira a própria morte.

12 maio, 2009

Cleópatra Dançarina


Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde

Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...

Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.

E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas

Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...

10 maio, 2009

Pelagus (XXIX)


Nu ábaco da maré que pre-
-enche o trilho sideral que zingamos
Mente a veia nílica
Do corpo no de Cleópatra
Violentada por mil balaústres
Balaustrada pelo vento vil que nos soprou até aqui.
No espaço aberto o sangue e o sémen têm cor mas
Não têm odor
Nem gravidade.

Pelagus (XXVIII)


Sob o ferro somos
Aqui, ali, que importa onde?
Ainda que mil mares abríssemos
Nunca deixaríamos de acometer o teu olhar
Negro e azul,
Cleopátria.
Somos sob o ferro
Escravos e livremente ancorados
Na eterna flutuação oblíqua do teu ventre, oh Mátria,
Procurando o porto universal.

Pelagus (XXVII)


Rumo ao desconhecido
Largamos âncora
Achando fundo
No ventre da preia-mar
Onde duas ondas se tocam
E se tornam uma.

09 maio, 2009

Dom Pedro


Dom Pedro era um velho que jurava
Serem as lágrimas por si choradas
Quem lhe deixara as faces enrugadas...
E eu, jovem sábio, sempre lhe indagava:

“Mas se as lágrimas são só feitas de água,
Como te marcaram, dia após dia?”
Ao que a pétrea figura respondia,
De olhar cheio de ternura e mágoa:

“Pois se a água, amigo, até perfura
(Faca na carne, roda até doer)
A pedra de entre todas a mais dura,

Como podia marcado não ter
Um rosto amolecido p’la amargura,
Um velho rosto farto de viver?...

08 maio, 2009

Pelagus (XXVI)


Os vítreos cones partidos,
Destroços à deriva,
Derramam a sua areia sobre a sirte
Avistada.
Há um planeta de areia
A acenar
Aos corações partidos
Dos novos argonautas.
Dali já não sairão.
O nosso tempo esgotou
Mas não sem que encontrássemos o nosso paraíso:
Nova Alexandria, Cleo-
-pátria.

Pelagus (XXV)


As retinas cansadas
Descobrem para lá das pálpebras cerradas
O Fogo de Sant’Elmo
No tope do mastro in-
-tenteado
Opondo a sua vela imaculada
À vontade quebrada do espaço.

07 maio, 2009

S/título


À força dos braços e à luz das velas
Constrói o homem o seu futuro.
Suporta no ombro másculo e duro
O peso de um céu pojado de estrelas.

Com espírito divino em corpo de homem,
Desafiando a Lei da Gravidade,
Rumo ao estelífero céu sem idade,
Vai para onde só os deuses sobem.

Eis, aurifulgente e piramidal,
Quando o primeiro sol cruza a manhã,
O monumento sobre-natural:

Alcançando o tecto do Egipto nobre,
Anunciando a sua temporã
Divindade, deixando o céu mais pobre...

06 maio, 2009

licantrópico de câncer


eis o centro do universo o ralo da banheira
por onde a água suja do meu banho se escoa
apenas um punhado de cabelos misturados
com sabão permanecem vivos tudo o resto morreu
sugado pelo pequeno buraco negro debaixo dos meus
pés
.........todo o cosmos perdeu a sua cor e a banheira
.........voltou a ter a sua característica cor branca
.........como folhas de amendoeiras albinas
eis o afterlife o espelho onde sulco
versos na superfície plena de água vaporizada
quando penteio os cabelos molhados
não me vejo devido ao efeito de condensação
da água
...............limpo a lagoa do poema com a palma da mão
agora já te vejo
olhos negros como o ralo da banheira por onde todo
o universo se escoou cabelos longos e entrelaçados
como os fios da história que nunca contaste os dedos
secos pelo hálito das palavras a boca aberta
como uma vulva promíscua acenando a língua à multidão
de sentidos e o espaço inter-dental colorido pelo sangue
das gengivas que se vazaram
.....................................................as tuas gengivas albinas
pulmões secos e ressequidos no lican–
–trópico de câncer

05 maio, 2009

Auto-Retrato


Ao lamber um borrão de tinta do meu dedo,
Surgiu-me na língua a ideia de usar
O céu da boca como Capela Sistina
Mas, em vez de pintar a Criação, fazer
O meu auto-retrato. Mas não sei que diga.
Por agora, só me ocorre dizer que tenho
(E normalmente não escrevo em alexandrinos)
A pele marinada p’lo sol mediterrânico.
De resto? Satanista. Comuneu. Atânico.

Auto-Retrato / Paisagem Vista Por Turista Numa Praia do Rio de Janeiro


Eu–
.....–tí–
........_–como

Macaquinho de imitação


Macaquinho maca–
–cão
Macaquinha maca–





–rrão

04 maio, 2009

Pelagus (XXIV)


Imponente,
A figura de proa
Rasga a zona fótica,
Os olhos luciferinos aclarando
O espaço negro à sua frente
Sirgando às cegas
As palavras tombolares
Que jamais alguém tomara pela mão
Enquanto uma fiada de sondas
Percorre o rumo pré-determinado,
Serialmente,
A intervalos regulares,
Sem nunca devolver o eco,
Perdendo-se numa zona de silêncio.

Pelagus (XXIII)


Aqui jaz naufragada uma confissão escrita para não ser lida.

Pelagus (XXII)


Desperta
O nebuloso acaso
Que encerra-
-nos corações enterra
O porvir
Da névoa incerta
Que trai o cair
Da noite
Sempre certa
Piscando relampejos
No seu sinal
Ora exposto
Ora eclipsado.

03 maio, 2009

alamedas celestes


sento-me nesta alameda onde todas as minhas memórias
são plantadas nesta esplanada de onde aceno ao empregado
de mesa que quero o costume uma bica se faz favor aceno
também à criança que houve em mim e à infância de um céu
limpo depois de engolido o líquido negro e amargo açucar só
no primeiro café o da manhã espeto palavras como agulhas
na língua dormente até ela
notem como construo a frase utilizando para sujeito não um pronome possessivo mas um pronome pessoal que transporta a língua a minha para uma esfera fora do plano do eu
_____...................................sangrar e até o sangue rubro
se misturar com o castanho do café e até esta mistura
se misturar com a saliva branca e até que a língua volte
a adormecer e a sonhar alamedas depois posso finalmente
abrir os olhos com um sorriso fingido nos cantos da boca
e vejo o céu coberto por uma nuvem de pombos
cinzentos de que outra cor poderiam ser os pombos migrando
da minha para outra qualquer memória e depois do bando
passar o céu já não é cerúleo mas gris e desmorona-se
a cada segundo que passa e a cada grão de café esmagado
pelas raízes da minha placenta
..... ___________....rebentaram-me as águas
_______________.e o céu é novamente limpo
___............_______.pela última e primeira vez

sonhos cor-de-mofo


de todas as vezes em que adormeço há um cheiro
de mofo que inunda as narinas do sonho que
recorrentemente me sonha tubos de tinta
apertam-se contorcendo-se sangrando para dentro
da minha boca cada pingo de líquido colorido
que neles houver
_____________em boa verdade não há princípio
nem fim deste sonho apenas o meio apenas
o lento desenrolar de um indeterminado número
de tubos de tinta sendo vazados para dentro
de mim
______e agora que penso nisso apercebo-me
que neste sonho nem sequer há adormecer ou
acordar apenas tubos de tinta sendo continua–
–mente vazados para dentro de mim
____________________________ao menos
agora sei ao que sabe o arco-íris e também
ao que cheira
______________________________a mofo

30 abril, 2009

tigres de papel


escondem-se tigres de papel no interior das gavetas
arquitectadas no plano vácuo e oblíquo que o movimento
da minha mão esquerda pressente movendo-se
muito lentamente os dedos dessa mão surpreendem-se
lutando entre si para chegar antes que todos os outros
à zona da canela onde a tíbia a direita para quem
se interrogue outrora se partiu
__________________ uma vez chegados
a meio caminho digamos ao nível dos joelhos
exactamente entre os joelhos equilibrando-se
na recta imaginária que os olhos do espelho
defronte poderiam traçar entre as duas rótulas
todos os cinco dedos olham para trás na direcção
da mão direita que segura um pénis também
de papel tal como os tigres escondidos como
se segurasse uma caneta
____________nisto ouve-se o rugido
de uma gaveta a abrir e o quinteto da mão esquerda
é engolido pela enorme boca da fera saída do poema
escrito pelos cinco dedos da mão direita
__________________entretanto a língua ri-se
roçando-se lascivamente até sangrar pelos dentes

S/título


Pela porta escancarada para o rosto da noite
Não se vê sombra,
Não se vê luz,
Não se vê nada.
Tudo é escuro e o tudo
Esconde a presença dissimulada
De um odor trazido pela aragem
Gélida e serena…
Odor doce de amêndoas que alivia
A dor ausente que o toque da morte gangrena.

29 abril, 2009

O Maquinista Maniqueísta


Olh'ó maquinista maniqueísta
Que segue em frente sem nunca parar,
Carrila em bitola monoteísta,
Vai até onde a linha o levar.

Já o maquinista maniqueísta
Tem cheios os inúmeros vagões
Atrelados ao comboio baptista
Circulando nos crentes corações.

Grito: "Oh maquinista maniqueísta!
Aonde pensas tu que irás chegar?
Não vês que andas às voltas numa pista
Em eterna viagem circolar?"

Mas o maquinista maniqueísta
Segue sempre em frente pois é feliz.
Tem a meta já ali bem à vista,
É lá onde se cruzam os carris...

28 abril, 2009

Amendual, parte 2

Servindo de suporte ao amendual.blogspot.com, sítio onde regularmente publico alguns poemas (se me for permitido por vós, leitores, assim classificar os versinhos que cá vou escrevendo), anuncio que tenho outra pernada do Amendual para partilhar convosco.
Assim, quem aceder a amendual.wordpress.com poderá ler alguns contos que, por serem maiorzinhos que as micronarrativas que por cá vou mostrando, achei por melhor publicar num outro sítio, assim como, no futuro, ler algumas das obras (completas) de que aqui neste Amendual original vou publicando alguns poemas. Como já hão-de ter reparado, os poemas estão agrupados em várias opera, sendo que uma vez um opus completo será publicado no outro Amendual (o tal em http://wordpress.com/). Assim, no futuro, e uma vez publicados todos os poemas do "Amanhã Chovi" aqui, procederei à publicação integral e pela ordem certa dos poemas no outro Amendual, o mesmo acontecendo com as restantes opera, tal como "Pelagus", "Versos Sem Sentido Consentido", "De Sons e de Sangue", etc. - a excepção a isto serão mesmo os poemas agrupados sob a etiqueta "Insanabile Cacoethes Scribendi", pois esta categoria corresponde a poemas que não fazem parte de nenhuma obra (poemas dispersos, se assim lhes quiserem chamar).
Para terminar, deixo o link para que possam ler no outro Amendual um conto intitulado "A Reconquista" (é só carregar aqui), escrito no ano passado. Espero que gostem!

Pelagus (XXI)


Lento mas inexorável
O nimbo avança
Até se expandir a todo o espaço.
Só depois, se vir, virá a bonança.
E eu, Lucas Nefelibata,
Desafio o acto de deus
No momento da procela,
O peito pando de esperança,
De candeio por olhar.

Pelagus (XX)


Da planura azul do teu regaço
Sereno, carinhoso
E maternal,
Nasce negro e gigantesco abraço
Violento, apaixonado
E mortal.

Pelagus (XIX)


Sangra-se a nuvem
Perante a órbita branca e elíptica
Do olho que a vela.
Sagra-se a luz da vida dos que no mar morreram
E dos que no espaço viverão.

Pelagus (XVIII)


Anda para o caminho!,
Grita a voz comandante,
A pé de galo,
Aos ouvidos
Ensurdecidos pela acção galvânica
Do homem do leme.
À flor do espaço
Não podemos permanecer a pairo,
Ouvindo a bela voz das sereias
Cantando em seco.

27 abril, 2009

S/título


Tenso,
O delgado fio suporta
O peso de um corpo
A partir do nada.
Equaciona, turva
E vislumbra uma recta
Onde se sente uma curva
Fora da estrada.

Por Favor, Lava-me os Olhos...


Por favor, lava-me os olhos cansados
Com a água pura do teu amor.
Tu, anjo, que ainda não tens gravado
Na retina o caminho da dor.

Por favor, lava-me os olhos doridos,
Não me temas, só tens que me tocar.
Trago na alma um olhar enegrecido
Cheio de mágoa que tens de vazar.

Por favor, lava-me os olhos vazados,
Trago-os vazios de tanto sorrir.
Sou máscara de um rosto cansado
Que só é rosto por saber fingir.

Por favor, lava-me os olhos fingidos.
Arranca-mos e joga-os ao mar.
Sinto a maresia a colori-los,
São agora azuis do azul do mar.

26 abril, 2009

o som dos corvos em abril


o som dos corvos preenche a pauta da noite
notas grasnadas na imensidão do céu negro
cúpula quente sob a qual inúmeras gargantas
cantam em uníssono silêncio o balbuciar
das músicas transportadas do além
e do aquém-tempo no magnético ressoar das memórias
_________________________pousado nas cordas
dos violinos e neles debicando a cor e a forma
o bando dá-se à multidão cobrindo-a com
as suas penas e os seus sons de negociadores
da morte
___________de livre vontade reunidos na necrópole
lembrança temporã de um tempo que já veio
mas que nunca chegou todos os transeuntes
páram e rodopiam sobre si mesmos como
notas grasnadas e insepultas fazendo-se vir
no ardor do silêncio que murmura abril invocando
a onomástica anónima dos seus capitães

24 abril, 2009

Abril


Saiu um grito à rua
E traz revoltado o povo na garganta.
Na mão fechada traz segura,
Desfraldada,
Uma bandeira em riste
Enquanto a aberta conduz
Uma criança, de sorriso triste,
Em direcção ao futuro.
Ah pudesse o próprio povo
Ser um grito de criança
E brincar com o tempo a seu bel-prazer
E o travo que nos corrói a língua
Já não seria agridoce.
Ah Abril, Abril,
Para quando nova chuva de cravos?
Uma gota,
Uma pétala que fosse…

23 abril, 2009

Adeus, meninos!...


No sorumbático troar dos sinos
Celebra o povo a perda dos seus
Como se um sonoro e cadente adeus
Chegasse aos ouvidos dos seus meninos.

Nos caixões, serenos e adormecidos,
Vestem-se a rigor para a viagem.
Na laje, uma inscrição com sua imagem
Impede que no escuro andem perdidos.

Seu dia finda, vão para a noite eterna
Por um rio de lágrimas – sua cama –
Choradas em sangue por quem os ama.
E na noite, ficarão à nossa espera…

20 abril, 2009

Revolução


Que dizes?
Como a não ouves?
Se eu a ouço
Mesmo agora,
Cantora insonora
Rompendo com a sua voz
A aurora
Que sucede à noite parda…
Não ainda a ouves?
Hás-de ouvi-la…
…quando for anunciada a hora,
Quando a hora for chegada…

16 abril, 2009

Pelagus (XVII)


Avança o vaso
Em missão de pacífica descoberta
Com a flâmula (des-)
-coberta,
O olho humano em cansada arfagem pelo horizonte
Enquanto o
A-
_ -ne-
_____-mo-
_________-ci-
____________-na-
_______________-mó-
___________________-gra-
_______________________-fo
_______________________Regista a velocidade e a direcção do
______________________________________________[vento
_______________________Automaticamente.

Pelagus (XVI)


Descobre para lá do brilhante azul
Mar estanhado
Do celeste véu
Que te cobre, amor.
As estrelas que se escondem
Para lá do que consegues ver
Traçam o perfil de um rosto
Que te fita do longe:
O meu.

15 abril, 2009

Obituário


Penso que terá sido de anteontem
A quinze dias
Que acordei às 4 da tarde com a lua
À minha cabeceira
Mascarada de enfermeira
E segurando a página do obituário
De um qualquer jornal diário. Estendeu o
Seu braço de luar e deu-ma
Para que a pudesse ler:
“Poeta desconhecido morre em cirurgia
De rotina. Durante
Uma laparotomia
Uma alcateia de láparos fugiu
De dentro da sua lura no abdómen
De Alexandre Homem
Dual
Levando consigo o coração do escritor
Desconstruído em pequenos pedaços.
No lugar do coração, foi encontrada
Uma lapa funérea com um poema inscrito
Mas ninguém o pôde ler porque o seu autor
Morreu antes sequer de o ter escrito.”
Sorri e devolvi o jornal à lua. Ela serviu-me
Uma chávena de café e perguntou-me
O que dizia o poema. “Amanhã Chovi”, respondi-lhe.
Ela sorriu-me de volta imediatamente antes
De regressar ao céu nocturno. Ainda hoje, nos meus poemas,
Lhe trago o sabor da carne – e do café – na ponta dos dedos.

Alterwords

Tive o privilégio de ser incluído, através da publicação de dois poemas, no terceiro número de uma nova revista literária on-line, a Alterwords, um projecto de periodicidade mensal e download gratuito.
A Alterwords chamou-me a atenção desde logo por ser um projecto co-gerido por uma das vozes que mais gosto de "ouver" escritas na blogosfera: a da
Carla Ribeiro. Mas mais importante do que isso, veio a chamar-me a atenção pelo que afirma no seu curto manifesto, se assim o poderemos chamar: "A AlterWords quer elogiar a literatura porque a literatura não é lixo". Não tenho a veleidade nem a prepotência de discutir aqui ou seja onde for se aquilo que escrevo é literatura ou sequer se tem algum valor, pois, sendo honesto comigo próprio, tenho de reconhecer que não é a mim que compete essa decisão (just for the record, concordo, se não na sua totalidade, pelo menos com a maioria dos postulados teoréticos da chamada Estética da Recepção); essa decisão só poderá ter como juízes o Leitor e o Tempo. Mas de qualquer forma, porque é como lixo que muitas vezes a arte é tratada, inclusivamente por muitos dos artistas contemporâneos, e porque em tempos de crise a cultura tende a ser posta no baú numa espécie de hibernação, resolvi contactar os responsáveis da Alterwords, para oferecer o meu parco mas honesto contributo no seu projecto. Assim, e porque escrever é, para mim, uma função fisiológica como comer, beber, dormir, etc., porque não participar nos primeiros passos deste novo projecto? Enviei 3 poemas à Carla, dos quais 2 foram publicados, facto pelo qual agradeço desde já a simpatia.
Fica então a recomendação da leitura da Alterwords, projecto de Carla Ribeiro e Bruno Pereira, e segue-se um dos 2 poemas saídos, intitulado Obituário. O outro, Amanhã Chovi, foi publicado logo nos primeiros tempos do Amendual e pode ser (re)lido aqui. Boas leituras!


P.S.: aqui ficam os links para os dois números anteriores da revista - Alterwords n.º 1 e Alterwords n.º 2.

14 abril, 2009

Ciclos


Eis a Primavera
E a tiara de andorinhas
Cobrindo-lhe a testa.

*

Trago-te o sabor
Na ponta dos dedos nus
Palpando o Verão

*

No Outono escarlate
Sinto-te as folhas dançando
Pousadas nos lábios.

*

Com as mãos, afasto-
te a branca neve dos ombros
No estertor do Inverno.

*

No final dos ciclos
Sobram as palavras vãs
P'ra nos confortar...



Conjunto de 5 haiku que tive o prazer de escrever para e ver publicados em aquele que considero ser o melhor blog de e sobre poesia da blogosfera portuguesa: o Porosidade Etérea.

13 abril, 2009

Oh Senhora


Oh senhora, são teus olhos,
Que me fazem divagar
Suspirar e desejar
Ser alvo do seu olhar…

Sim, são teus lábios, senhora,
Os verdadeiros culpados
De meus lúbricos pecados
Esses teus lábios rosados…

São teus cabelos, senhora,
Que me levam a andar
À deriva e a ansiar
Por neles eu me afogar…

Pois sois vós enfim, senhora,
Sois vós, doce rapariga,
A vilã que me castiga
Com esses beijos de amiga.

12 abril, 2009

Caixa em Forma de Coração


Esculpiste uma caixinha
Feita em madeira,
Qual carpinteira,
Colada com tuas lágrimas,
Gotas de orvalho caídas
De uma parreira
Recém-florida...
Encerraste o coração
Dentro daquele caixão,
Qual carpideira,
Quando eu morri...
E eu espero no meu caixote
Que te traga a mim a morte
A noite inteira...

"fado..."


Amália nascera muda; Alfredo, surdo, somente aprendera a articular uns grunhidos, pelo que a linguagem corporal lhes bastava. Os dias passavam sem que houvesse necessidade do uso de palavras. Mas quando o sol se punha, Amália despia-se e, nua, ficava em frente da janela aberta, deixando o bafejo lisboeta beijar-lhe a pele e despertar-lhe a voz dos sentidos, enquanto a noite lhe cobria os ombros com um xaile negro. Alfredo, ouvindo o chamamento das estrelas que assomavam, erectas, nos seios de Amália, despia-se também e deitava-se na cama, à espera da amada. Lentamente largando o xaile, ela deslocava-se, arrastada, lânguida, para cima do corpo do amante. E a cada movimento licencioso de Amália, Alfredo gemia, como uma guitarra, sentindo enterrar-se cada vez mais no refrão do fado que ela, em silêncio, cantava.

"Fado!"

Lisboa, 1945. Soltando as palavras como fossem decretos, o Cardeal disse ao Professor que precisavam de tomar pulso à Nação. O Professor fez um gesto repetido com a cabeça, demonstrando a sua concordância. Porém, inquiriu:
“Mas como?”
“Fátima, Futebol e Fado”, respondeu o Cardeal. “Os ópios do Povo!”
“Fado?”, perguntou o Professor.
“Fado! Porquê? Não gosta?”
“Gosto… É só que eu sempre acreditei no Livre-Arbítrio…”

Fados de Xaile Despidos

Hoje inicio a publicação de uma nova opus (ou conjunto de textos/poemas, se assim lhe preferirem chamar) intitulada “Fados de Xaile Despidos”. Trata-se de um conjunto de poemas inspirado precisamente pelo estilo de música (estilo de vida?) referido no título: o tão lusitano Fado. São poemas escritos num estilo estrutural que os tornaria facilmente "letráveis" enquanto "letras de fado". Não sendo músico senão das palavras, esta é a minha forma de cantar o fado...
Juntamente com o primeiro poema do conjunto, publico ainda duas micro-narrativas que saíram na Revista Minguante há alguns meses atrás, precisamente escritas para esse número sob o tema “Fado”. Espero que gostem das micros e, especialmente, do “Fados de Xaile Despidos”.

10 abril, 2009

Pelagus (XV)


No silêncio da noite perpétua
Perpetua-
______ -se a ausência de sonhos.
Conto estrelas para adormecer
À medida que as vejo desfilar, como aljôfares, a granel
Enquanto singramos para o abissal céu
Na quadrícula de pixels
Como faúlhas de fogo fátuo
Procurando a nossa nova Alexandria.

Pelagus (XIV)


Num universo cheio de nada,
O que procuramos?
Até que fronteiras
Estamos dispostos a imaginar
Se a última fronteira
Não é solo firme
Onde o vigia no cesto da gávea
Possa gritar
Terra à vista?

09 abril, 2009

7 Poemas, Uma Vida (IV)


Descansa, fatal, no intervalo invisível
Do mosaico formado sob o peso
Dos seus músculos confundindo-se prolífico
Na vegetação sonhada que esconde
O seu instinto matador,
A brancura caçadora dos seus caninos…

S/título


enSimesmado
Deus jaz
e em dor
o mundo esquece

18 março, 2009

Feijoada de Carne


Comia-te toda,
Inteira,
Ali mesmo,
Como quem come
Feijoada de carne
Directamente da panela ao lume
Com as mãos,
Lambendo os dedos
Queimados
Enquanto o molho
Quente e espesso
Envolve toda a língua num abraço
De fome e de prazer.
Era assim que eu te comia,
Toda,
Inteira,
Aqui mesmo,
Vindo-me em ti como
A panela silvasse
Tssssssssssssssssssssssss
Anunciando-me
Vem para a mesa gourmet
A feijoada está feita,
Temperada,
Pronta para ser
Vorazmente devorada…

15 março, 2009

7 Poemas, Uma Vida (III)


Às matinais duas de um Janeiro frio,
Por cima da cidade dormente,
A noite geme com cio.
Onde está toda a gente?
Num bar talvez,
Mais um copo vazio…
Talvez no lar concupiscente
Longe do olhar alheio
Onde a moral perde o freio
E o corpo sente o que a vergonha lhe mente…
Ei-los, na rua,
Belos, loucos, felinos…
Ele, pardo como a noite que os cobre,
Cobre-a a ela, de pelagem nívea,
Com uma pesada e sensual brutalidade
Que tresanda à mais bestial lascívia…
Másculo e robusto, ele
Deposita, decidida mas ternamente,
Uma longa e dolorosa dentada
No pescoço frágil da sua fêmea dominada.
Consumado o amor que eles nunca mais lembrarão
Separam-se os corpos
Mas permanecem os líquidos e os cheiros em comunhão.
Ele para um lado, ela para outro,
Sentados na sua cama de lençóis de asfalto,
Limpam-se, cada qual a si mesmo,
Sem mais ternura, sem mais querer…
Quando aprenderá o homem que a vida
Não mais é que comer, beber e foder
E não necessariamente por essa ordem?
Quanto mais tempo se iludirá o Homem
De que o amor sabe melhor se pecado
E expurgado vezes sem conta
Pela absolvição de um acto não confessionado?

13 março, 2009

S/título


O sufoco de uma viagem
Ao país dos sonhos
Pode ser medido
Pelo grau de incerteza
Do desejo de readormecer.

10 março, 2009

Uma Estação de Rádio Mal Sintonizada


A loucura é uma estação de rádio mal sintonizada
E a minha voz um DJ arranhando etimologias até
A noite ser uma imagem límpida debaixo
De uma chuva de sons sem significado.
Não tentes desligar-me pois eu não tenho pilhas
Nem sou alimentado pela electricidade. Abomino
Tudo o que seja fruto do homem, eu que sou eu
Próprio filho de Moisés.
Aqui, onde Deus te esqueceu, entre as ondas,
Mergulho-te nos olhos azuis pequenas poças de água da chuva,
Percorro-te os caminhos todos de ti que tu próprio desconheces,
Rodeado de tubarões e carpas,
E, por fim, chupo os dedos mindinhos dos pés
Da tua alma. É madrugada.
O programa acabou. Amanhã voltarei
Mas não, nunca, à mesma hora.

7 Poemas, Uma Vida (II)


Dorme,
Incauto dos perigos do mundo
Lá fora,
Exausto pelos cansaços aristocratas
De quem ignora
Que a vida pode ser filosofada
Para além do comer a horas
Ou do correr atrás das gatas.
E quando, de quando em quando,
Suspenso o sono
E semi-aberto um olho, às vezes os dois,
Fita o dono,
Suspendem-se também o tempo
E os perigos do mundo
Lá fora,
Para voltar a semi-cerrá-los
E a enroscar-se fragilmente,
Confiado descuido,
No colo dormente
De quem o ama…

09 março, 2009

Resignação


À resignação dormente dos teus braços,
Nas noites solitárias povoadas
Por criaturas imaginárias, me
Atraco, navio fantasma derivando num vaivém
Líquido de sons inventados pelos dedos
Do pianista que se escondia nas sombras,
Cavalgando a lua e as nuvens
Da tempestade de aplausos,
Tocando,
Como fossem teclas,
Cada pétala do meu coração...
E se o pianista lho pedisse,
Bateria o melro
As asas novamente quando pousado nas cordas
Por baixo
Dos limites intentos da minha ilusão?

Poema escrito sob o feitiço do tema "Resignação" do In Tento Trio.

07 março, 2009

Pelagus (XIII)


Oito vírgula três minutos
É o tempo estimado
Para que a luz do sol
Ilumine o céu
E chegue à Terra.
E a ti?
Qual é o tempo estimado
Para que recebas o meu
Amo-te
Em perfeitas condições de recepção
Sem escarcéu,
Sem ruídos ou interferências?

06 março, 2009

A Navalha Que Degolou Um Cão Andaluz


E quando vires a navalha de barbeiro
Cortando a lua como se fosse o teu olho
Saberás que sou um cão andaluz pincelado
Pela projecção da tua loucura...

Nota na Porta de um Frigorífico na Vila de Figueres, Catalunha


Nota (Maio de 1908):

Quando for para Madrid
Comer uns dalinianos ovos estrelados
Surrealisticamente cozinhados
Ao lume de uma girafa em chamas
E chupar-lhe todo o leite das mamas!
Depois, aquecer o tempo,
Derretê-lo,
E moldar o meu futuro bigode
Como dois ponteiros
Badalando meia-noite e meio-dia
Numa perfeita e simultânea desarmonia.

Ass: Salvador

P.S.: após tudo isto,
Ir para a escola de belas-artes que o papá escolher.

05 março, 2009

7 Poemas, Uma Vida (I)


Nunca, até hoje, da minha poesia
Se alimentaram muitos gatos
Ou nela saltaram ou ronronaram…
Talvez seja hoje o dia
Certo para fechar as cortinas
Das minhas janelas
E chamar o vadio que brinca na rua!
Vou deixar só a porta aberta
E um rasto de odor a peixe,
A carne despida de escamas, nua,
Como um longo e lascivo verso alexandrino,
Trilho que conduz
Um antigo instinto felino…
Quando dois olhos brilhantes
Reflectores da pouca luz
Saída do meu poema,
Assinalando a sua presença
À porta do meu poema,
Se encontrarem com os meus,
Vou pôr uma mantinha
– velha mas quentinha! –
Sobre as minhas pernas
E chamá-lo:
“B’ch b´ch b´ch b´ch b´ch b´ch
Anda cá bichano”…
E quando ele, pata ante pata,
Dançando e saltitando,
Se vier enroscar no meu colo
Sob o jugo da minha mão
A acariciar-lhe um lar no pêlo,
Vou simplesmente miar-lhe ao ouvido:
“Gato, amo-te
Como tu amas a liberdade,
Um ratinho de corda ou o novelo de lã”…

04 março, 2009

Capucho Encarnado


Em negra face nas sombras uivando,
Num sonho repetido e cansado,
Ela vê-se num virgem bosque andando
Vestida de um capucho encarnado.

Numa floresta nascida da Treva
Com árvores do tamanho do medo,
O ar é tão pesado que enerva
E encerra em si horrível segredo.

Quando o sol se põe e cai a escuridão
Clamar socorro é inútil e vão
Pois ninguém a poderá ajudar.

Súbito acorda, escarlate, grosseira,
Uma voz sussurra-lhe à cabeceira:
O grande lobo mau vai te apanhar…

03 março, 2009

A Poesia


Aleivosa e insinuante
Confunde-se reptante
Com o calor tórrido,
Mexicano,
E com o cheiro derramado
A tequilha
E a sonhos húmidos
Com sabor de chocolate
E baunilha.

02 março, 2009

O Crítico Literário


Com a caneta em punho, justiceiro
Ímpio, em missão para o seu jornal,
Tanto faz a crítica musical
Como analisa o mercado livreiro.

Pronto para a matança, o guerreiro
Revê o seu bélico arsenal:
Gramática, compêndio universal,
Dicionário p´ra termo mais brejeiro.

É opinion maker abalizado
E o público aceita seu dom sicário
Pois no verso e na prosa é versado.

Só ele sabe de cor o abecedário.
De quem é o perfil apresentado?
Pois é o do crítico literário!

01 março, 2009

S/título


Na maleabilidade incerta da luz opressora
A instância final e arbitrária do objecto
Iluminado não se augura
Um destino contínuo e recto.
A linearidade da vida é mera ilusão
À qual uma certa fobia às linhas curvas
Torna abstracta qualquer noção de imortalidade.

28 fevereiro, 2009

S/título


Aurifulgente, a meretriz papisa
Entrega-se à cúprica multidão
Que a engole sob o manto de mãos
Famélicas do que ela simboliza:

Santidade e Martírio. Mas Luxúria
E Lascívia, sacramentos da missa
Negra da obscura chefe submissa,
São sinais administrados na Cúria

Onde um magote de línguas rezando
Vindo-se a sentir nesta parangona
De vícios e virtudes, p´la virilha,

Numa turba de dedos libertando
(Raivosos, sôfregos) uma matilha
De explosões vindas de dentro da sua cona...

27 fevereiro, 2009

Pelagus (XII)


Talvez haja um ponto no universo
Em que a perspectiva é tal
Que se consegue
Provavelmente
Escrever uma teodiceia
Se conectarmos as estrelas
Sob uma determinada ordem
Pré-estabelecida.
Mas se não estiver lá ninguém
Quem a leria?
E ainda que lá esteja alguém…
Alguém
Se importaria?

26 fevereiro, 2009

Eva Sem Adão


Morta jaz, rodeada de mil velas,
Sepultada numa fogueira em cruz.
Mas o seu corpo não arde, transluz
Como se pintado por aguarelas.

Nem a Mãe-Terra a recebe, pois ela,
Noiva de Deus e amante do Diabo,
Manchou com sangue o impoluto pacto
Assinado por Deus na alma dela.

Ao redor, mil bruxas gemem em pranto
Desta pega de ígnea beleza ruiva
Elevando-a ao vil céu, enquanto,

Licanmorfa, uma constelação
De estrelas, brilhando escarlates, uiva
P'lo luto de uma Eva sem Adão...

25 fevereiro, 2009

Cristandade (ou O Rebanho de Deus)


Góticas torres e eclesiásticas
Vozes erguem-se para o paternal céu;
O ar, cheio de vontades monásticas,
A todos sufoca, como um véu
Apertado nas gargantas suásticas
De ovelhas comendo o lobo-deus seu.

Em orgiástica antropofagia
E celeste e divino vampirismo
Observa o rebanho o nascer do dia
No templo do teo-canibalismo
A meio da noite escura e fria,
Em frenético puritanismo...

Seus olhos rasgam o crucificado
(Só um rapaz vestido de Messias...),
E engolem o corpo santificado
Filho de deus e de humana Maria
Que no ventre incubou o desejado
Rebento de uma crença judia.

Oh tu licantrópico deus cristão,
Como te cercaste por tal rebanho?
É o teu filho, do teu filho irmão,
Quem te consome em pecado tamanho
Em missas de violenta comunhão
Onde te reza o verbo um estranho.

Morto e despido, na sua cruz de madeira,
Jaz aquele que morreu pela humanidade…
Morreu pela humanidade inteira,
Pela crente e gentia Cristandade...

Jaz morto...
Mas fita com os seus olhos sem idade
A pornográfica submissão da Humanidade
Inteira...

24 fevereiro, 2009

Anúncio: arte de Úrsula Mestre nas ruas de Faro.

É com muito prazer que anuncio que Úrsula Mestre, love of my life, vai apresentar uma das suas obras ("Saia Que Gritas") nas ruas de Faro, no próximo dia 27 de Fevereiro. Mais informações podem ser obtidas aqui, aqui e aqui. Ah, e aqui também!

23 fevereiro, 2009

S/título

Hoje é dia de mudar hábitos
E ser eu. Ou de ser
Eu um outro. É dia de sair
Do claustro onde a chuva
Só chega na forma de sangue
E de pecado. Hoje é dia
De acender cigarros, mil,
Repetidamente (mas não fumá-los;
Ao invés, vê-los consumir-se,
Um por um, um por outro,
Como faróis de carros descendo
Uma avenida em hora de ponta
E alcatroando-se pelo horizonte)
Sem que o tempo lhes possa acudir.
É dia de me sentar à beira-mar
Ou no fundo de um rio talvez,
Sentindo a água doce ser tomada
Pelo gosto do sal... é dia de
Inventar uma palavra nova ou
Até talvez se a maré estiver
A vazar e as amêijoas saltarem,
Promíscuas, da lama para os meus
Braços, para o meu colo,
De escrever uma nova teologia.
Mas agora hoje já é fim de tarde
E este sol não se voltará a pôr,
Outro amanhã virá mas este
Não nunca mais...
A noite é escura. E hoje,
Às onze e onze em ponto,
Vou deixar-me ir no barco de
Colombo, até ao outro lado do mundo
Onde dançarei com os índios.
Nu. Promíscuo. Feliz.

20 fevereiro, 2009

Vamperatriz


Nos seus braços, como vil centopeia,
Mortais amantes eram apertados
E repetidamente violados
Um por um, nas noites de lua cheia.

Atraía-os com o odor do vinho
Escorrendo, rubro, p’las suas coxas,
Despida no meio de sedas roxas
Cheirando a canela e a rosmaninho.

Alimentando-se de sangue e sémen,
Na sua insaciável tesão,
Satisfazia-se a ritmo frenético.

Entregues à Vamperatriz do Amor,
Todos os homens sucumbiam, não
Por necessidade mas por desporto.

19 fevereiro, 2009

Pelagus (XI)


Vadiando na galáctica madrugada
Encontrei
Como encontrasse uma velha moeda alijada
_______-me
Na sombra projectada
No mar
Pelas estrelas
De mim:
Sou o poeta de longos cabelos e alma infinita
Às vezes
E às outras
O poeta sem alma cujos cabelos se espraiam pelo infinito.

Pelagus (X)


Adriçada
Agiliza-se a ampulheta
Com palavras por grãos de areia
Sob os pés
E salta,
Aberração da luz,
No vazio faraónico
Do túmulo tutancamónico
Do olhar de Ramsés.

18 fevereiro, 2009

Vulnerabilidade


De olhos vendados,
Vulnerável,
Não por força alheia e bruta,
Mas por sua vontade
Fechados,
Ela se prostra
Sobre a mesa que às vezes é cama,
Onde ele a almoça quando ela o chama...
Sem palavras (quem realmente
Delas precisa?), ela prende-se, sem correntes,
Às mãos rudes que a possuirão
E ao corpo estranho que a cobrirá
De peso e de prazer.
Sem palavras, sempre sem palavras,
A lânguida morosidade da escuridão
Cairá
Sobre a tarde proibida em jorros de luz vespertina a amadurecer
Na língua do amante que ela nunca verá...

O Beijo



O púbere peito,
Sôfrego,
Corpuscular,
Entrega-se casto
Na sua brancura virginal
À boca experiente
Que prende entre-dentes
O mamilo desperto,
Erecto,
Quente pelo contacto
Com a língua que o acaricia…
E a brancura peitoral
É escarlatada
Pela abertura ensanguentada
No seio feita
Pelos caninos do amante que chupa,
Sedutor,
O sangue
E o leite da mama
Num misto de sede hemófila
E de maternal amor…

16 fevereiro, 2009

Janeiro


No frio Janeiro
Cresce uma primavera quente
Que chama a si os pássaros
De outras latitudes
Na sua rota migratória.
No silêncio frio de Janeiro
Há uma voz sirene
E uma luz tépida
Acolhidas pela lua cheia
Ao canto superior esquerdo
De uma página em branco
Da tenebrosa impotência do escritor.
No imenso frio do silencioso Janeiro
Há um homicídio impune em cada folha rasgada.
Além disso, apenas um leve e janeiresco estertor…

14 fevereiro, 2009

Café e torradas de broa com mel

Um mal entendido (que começou por uma desatenção minha quanto ao limite de palavras imposto pela Minguante) levou a que, num primeiro momento, um dos textos que enviei para publicação não fosse publicado e que, posteriormente, tendo eu contactado a Revista a propor um texto alternativo ao que não foi publicado, o texto originalmente publicado fosse substituído pelo texto proposto alternativo. Assim sendo, aqui ficam a trilogia de micronarrativas sobre a superstição completa e publicada: se não na Minguante, aqui mesmo, no Amendual.

“Café e torradas com mel”

Diariamente, Perpétua (que não era supersticiosa) repetia a mesmíssima rotina desde que casara: saída do banho, sentava-se, de cabelo molhado e toalha enrolada à volta do corpo, à mesa onde o marido a esperava para o pequeno-almoço – café e torradas de broa com mel. Depois de Perpétua falecer, o marido (que sempre fora supersticioso) continuou a preparar, todas as manhãs, duas chávenas de café e torradas de broa com mel. Mas a verdade é que nunca mais sentiria o beijo terno dos uxorianos lábios de Perpétua.

Superstição

Habitualmente, ele começava por dizer-lhe que a amava, ao que ela lhe respondia que o amava ao quadrado. Ele a ela ao cubo. E ela amava-o a ele elevado a infinitos. Riam e eram felizes. Um dia, ao separarem-se, ele, que era professor de matemática no segundo ciclo, não pôde deixar de se aperceber que que 1 amo-te elevado a infinitos é igual a 1 amo-te elevado ao cubo ou mesmo a 1 amo-te elevado ao quadrado. Ou ainda a 1 amo-te simples. O seu amor não era afinal maior do que o de qualquer outro casal que verdadeiramente se amasse mas que nunca dissesse “eu amo-te”.

13 fevereiro, 2009

Uma prosa de lobos no corpo peludo de um poema

Já saiu o décimo terceiro número da Minguante, Revista Portuguesa de Micronarrativas, sob o signo da Superstição, onde, mais uma vez, tenho a honra de ser incluído com um texto (ler aqui). Infelizmente (para minha incompreensão), desta vez apenas foi publicado um dos dois textos que enviei. O outro, intitulado “Uma prosa de lobos no corpo peludo de um poema”, uma vez que não teve honras de publicação, fica aqui entregue aos vossos olhos. Espero que o apreciem, pois penso que, não sendo uma micronarrativa no sentido clássico do termo (se é que há um...), julgo que não deixa de ser um belíssimo texto.



__________________________A avó ensinara-a,
__________________ _______desde tenra idade,
___________________ ________a seguir pelo
_____________________________caminho
______________________aberto pelos pés ancestrais
_____________________dos seus antepassados. Nunca
_____________________________________________FORA do
_____________________________caminho.
_______________________Além disso, ensinara-lhe __________________ _ _____ ainda que os homens
________________________de sobrancelhas unidas
___________________________são lobisomens.
_______________ _____________ T.O.D.O.S.
___________________________Um dia, a neta,
_____ _________________já mulher de idade madura,
______________________________pisou
________FORA do _

___________________ _________caminho
____________________econheceuumhomemjovemebonito
________________________de sobrancelhas unidas
__________________e fez amor com ele em cima das folhas c
____________________________ _________________a
______________________________________________í
_______________ _ _____________________________d
_________________ _____________________________a
___ _______________ ____________________________s
______________________dAs áRvOrEs dA fLoReStA.
_________________ ______Quando ele adormeceu,
___________ _____________ela tirou-lhe os pêlos
________________________entre as sobrancelhas,
_____________________usando como pinças os dentes \____________________ pensando assim estar a salvo.
_______________ ____Mas o que avó nunca lhe ensinara
_____________________________é que...
___________________...os piores lobos são os peludos por ___________________ ___(e os que uivam de)
___________________________D E N T R O
______________________docaminhodocorpodopoema...

12 fevereiro, 2009

A Ofélia

A Ofélia invejo a tranquilidade,
A paz, o sossego depois da dor.
Invejo-lhe a coragem sem temor
De se entregar, bela, à Eternidade.

Rio que passas, depositador
Da minha última vera vontade,
A ti dou meu corpo, oh felicidade
Daquele a quem não socorreu o Amor…

Vós, manto mortal que escutais meu pranto
E falsas lágrimas de que preciso:
Ajudem-me a compor o meu canto!

Atem-me nos fios que a Sorte teceu,
Fechem-me os olhos, finjam-me um sorriso
E embalem-me nos braços de Morfeu…

*o poema de hoje foi publicado a pedido... muitos parabéns, meu amor...;)

11 fevereiro, 2009

No Delta do Meu Nilo


No delta do meu Nilo
Os entardeceres são mulatos,
Espumosos e amargos.
Como grãos de café
Moídos pelos meus molares
Espalhando o seu negro aroma
Pela rubra língua,
Vindo-se as minhas glândulas salivares.
Na água suja do rio que desagua
Na minha alma
Mergulho, como colher, a minha corporalidade nua
E mexo-me,
Vagarosamente,
Como um slow-dance ao pôr-do-sol
Com a mais saborosa mulher que o ritmo já marcou…
Trago-lhe o sabor da carne na ponta dos dedos
E durante a solitária noite
Lambo-lhe silenciosamente todos os segredos…

Onde o Amendual chegou...

Este blog é o pequeno projecto de um pequeníssimo e desconhecido escritor que se assume como Alexandre Homem Dual na poesia e como Valter Ego na prosa. Valter Ego é, em boa verdade, um pseudónimo de Alexandre Homem Dual que é, por sua vez, um alterónimo de mim próprio (Valter Encarnação, muito prazer). O Alexandre é (passo a citar) “um louco que deambula entre um pessimismo vitalista e um vitalismo pessimista”, uma voz na minha cabeça... muito provavelmente, sou muito mais Alexandre e muito menos Valter a maior parte do tempo. O Valter Ego é uma forma de expressão, um mecanismo do Alexandre escrever em prosa e de, ao mesmo tempo, dar a conhecer a sua poesia – não é nunca o Alexandre que fala convosco, nunca... No meio deles, poesias e prosas e literaturas à parte, estou eu, homem de carne e osso. Um homem contente quando sabe que, para além dos olhos de quem o ama e ama naturalmente tudo o que escreve (yes, you...), há outros (poucos mas bons) olhos que o leêm e ouvidos que o escutam. Um homem naturalmente contente quando encontra em sítios alheios palavras que são suas... Um muito obrigado pessoal à Patrícia e ao seu Acesso Restrito e à Sofia no seu Cinemuerte (sim, é mesmo a Sofia Vieira, vocalista dos Cinemuerte, que tem colaborado com Moonspell ao longo dos tempos). Espero que ambas continuem a apreciar as minhas palavras...

05 fevereiro, 2009

Mundo de Cheiros Escarlates


O mundo p’ra mim é cheiro, amor,
E constrói-se a cada instante que inspiro.
Não é o ar que respiras que me alimenta
Mas o cheiro do sangue e do horror
De um mundo a preto e cinza onde só o sangue tem cor.
Um mundo onde cada odor
É um tijolo a construir um mapa dos sentidos
E onde cada cheiro
São dedos estendidos
Lutando p’ra reconhecer o mundo cego em que vivo…

Succubus


Flutua, incorpórea, à cabeceira
Dos que procuram a retemperança
De uma madrugada calma e mansa
Nos braços de uma cama hospedeira.

Insinua-se ágil e penetrante
Por entre os lençóis de linho lavados
E enrola-se nos encaracolados
Pudicos cabelos do seu amante.

Ama quem escolhe e escolhe quem quer.
Sem ter forma, inventa-se mulher,
Faz-se debaixo de um corpo suado.

Succubus anjo demónio mulher
Ama-te quem desperto não te quer
Porém sonha contigo... acordado.

Repulsa

Nuns olhos assustados tudo começa.
Num olho desesperado tudo termina.

Pune na realidade os pecadores dos teus sonhos, criança,
Assassina estrangeira!

Também as moscas são pecadoras,
Sobrevoam e cobiçam o nosso alimento
Que jaz no prato há 12 dias. Cru.
Morram, pecadores!

(Gemidos na noite através de paredes de cimento)

"Não, não entre aí, a casa de banho está ocupada.
O meu amante jaz na banheira”, gritou a doce louca.
As suas vestes não eram apropriadas e o senhorio,
Numa voz baixa e rouca, disse:
“Cuida bem de mim, querida, e eu esqueço a renda”.
Um calor líquido percorreu o seu pescoço. E o seu corpo.
Sangrou. Até à morte.

As mãos da tua consciência
Saem através das paredes do teu refúgio…

Banheira, sofá e cama,
Procurem aí os cadáveres das vítimas e da ré.
Por vezes, aí brincam e jubilam…

Vem, amor, talvez possamos visitar
A torre natal dos teus sonhos…


Inspirado pelo filme "Repulsion"

02 fevereiro, 2009

A ti que me lês

A ti que me lês
Não entrego o meu corpo em pão
Mas em versos
Nem entrego o meu sangue em vinho
Mas na tinta com que escrevo os meus versos.
Não me busques nem me procures nem me demandes,
Quando muito questiona, se te é mesmo necessário,
O que o teu coração decifra da minha caligrafia.
É que eu sou universal, sabes,
Um alterónimo de mim mesmo
Cantando a individualidade do cada um que há em mim.
E às vezes esqueço o indivi-
E canto apenas a -dualidade.
Sou como a terra e sou como o mar que,
Quando se tocam, perfazem o horizonte,
E o horizonte não existe, sei-o bem,
Pelo menos não mais (mas também não menos) do que eu.
A terra é só uma mas divide-se em várias,
Em países, em continentes,
Em gentes - e essas gentes em outras gentes.
E o oceano que é também só um
Divide-se em mares
E mesmo esses dividem-se em muitos rios
Que nos mares vão desaguar.
E os rios repetem-se ao longo dos séculos
Tal como eu me repito muitas vezes
E a água que neles corre nunca é a mesma
Mas é sempre a mesma, compreendes?
E contradigo-me, sim, contradigo-me, se calhar ainda mais vezes
Do que me repito ou do que minto - a natureza também nos
__________________[mente, porque não mentiria eu? -
Mas não será a contradição o mais belo predicado da
_____________________________[condição humana?
E a chuva quando cai
Não o faz multiplicada por uma quantidade de gotas que,
Ilusoriamente,
Se assemelham ao infinito?
Ainda assim, a chuva nunca deixa de ser a chuva,
Hoje como ontem,
Amanhã como sempre.
E o universo
Possivelmente um dia
Chamar-se-á multiverso!
Não procures unidade ou coerência nos meus olhos...
Se eu próprio sou plural e incoerente
Como poderia ser coerente e una
A visão que tenho do mundo que me cerca
E do mundo que eu cerco
Dentro das minhas fronteiras?

S/título


Alheia à velocidade
A que o tempo corre,
Ela toca-se enquanto percorre
Os caminhos do instantâneo
Que lhe escorre
Pelos lábios
E por entre os dedos da mão…

My Lady


Namoradeira, de olhos cor de brandy
But british nas momices e no ser,
Tenta ao máximo por não parecer
Frígida na sua pele de cor cândi.

Do alto de toda a sua altura
Olha os homens somente de relance
E se algum há que lhe peça que dance
O jeito sem jeito não lho augura.

Fica-se então pelo bar namoriscando
Com quem for que à sua volta ande
Por entre os drinques que lhe vão pagando.

My lady, volta para a tua ilha
Pois teu corpo é belo mas muito grande,
Grande demais para a nossa camilha…

Só Vão...

Passeiam pelo meu retiro
Soltas notas de um violão.
Trocam carícias com o silêncio,
Amantes sem corpo, sem paixão.
No escuro dançam serenos
Em harmónica orgia
Na imensidão da noite que há dentro de mim…
Madrugadas sem fim que se renovam perpetuamente…
Amantes sem corpo, sem paixão,
Passeiam pelo meu retiro.
Soltas notas de um violão
Trocam olhares com o silêncio.
Vão, só vão…

31 janeiro, 2009

Botão a botão

Botão a botão, o tempo é desabotoado
Nesse teu corpo de flanela
Onde embrulhado e quieto,
Muito quieto, te vejo dançar à volta do espelho
Iluminado pelo ecrã de cinema.
Os teus gestos são ora lentos ora rápidos
Mas sempre silenciosos como se o vento parasse
De soprar no exacto momento em que as folhas
Avermelhadas pelo bafejo do Outono e caídas no chão,
Junto aos teus pés, se levantassem,
Como que renunciando à escuridão do Inverno por vir
E almejando voltar aos galhos da árvore
De onde caíram. De volta à Primavera, longe
Do tempo linear.
O meu coração é um relógio avariado
Avançando para trás no tempo, em busca da hora certa em que te
________________________________________[conheci
E em que te amei.
E quando os primeiros raios de luz pintarem o horizonte do
_________________________________[solstício de Verão
Vou simplesmente dizer-te
Boa noite...


Inspirado pelo filme "The Curious Case of Benjamin Button"

29 janeiro, 2009

O Presidente


O Presidente, nas suas conferências de imprensa, repetia sempre que desde pequeno dizia ao pai que se o mundo fosse como ele o sonhava, poderia não ser o melhor dos mundos mas seria, com toda a certeza, um mundo melhor. Um dia, ao mandar invadir um país longínquo em nome da liberdade percebeu, não sem uma ponta de cinismo, que não poderia jamais mudar o mundo mas que o mundo o tinha mudado a ele.

Pelagus (IX)


Ainda são vivos
Os velhos Velhos do Restelo
Na zona que cobre e descobre
Fazendo navegação à cabotagem.
E as suas palavras podem ser ouvidas
Porque às vezes eles lançam-nas ao vento
E nas noites de ventos contrários elas andam no espaço à deriva
Incapazes de navegar à bolina.

Pelagus (VIII)


Aceso o navio,
Projectam-se no espaço sem rugas
Os dedos e as mãos que outrora
Saborearam o mar
Mas que agora,
De água no bico,
Zarpam para alcançar o infinitesimal
Quinhão
Da vontade humana
Sem Rei nem formão.

Pelagus (VII)


Descobri o tempo e a ausência dele
Na pele branca
De uma brancura clara de ovo
Quando embarquei
De olhar cândido e novo
No seu corpo nocturno e viajei
Com a ponta dos dedos
Seguindo a direcção das veias que quase brilhavam
Como estrelas através do seu corpo translúcido.
E a manhã trouxe a sua luz
A reflectir-se no cabelo loiro
Supernova explosão nas retinas encandeadas da minha saudade,
Como velas cheias de vento.
E encontrei deus ou a sua ausência
Na alma
Para lá do azul celeste dos seus olhos
Que pingavam lágrimas com sabor a mar
Quando nos fitámos sem pestanejar
Durante mil anos-luz.
E para lá do azul celeste dos seus olhos
Contemplei o vazio
Como uma auto-estrada sobre um mar negro
Desembocando no desconhecido.

26 janeiro, 2009

Saudade

Meu amor partiu para ver o mundo:
Seguiu o sol, foi para o Oriente,
Conheceu novos povos e viu gente
Estrangeira, de espírito fecundo.

De lá, foi para o Negro Continente,
Viajou do Cairo até ao Bailundo
E viu magia, crédito profundo
De várias tribos, de credo dif’rente.

Partiu desafiando o mar azul,
Aventurou-se na América-Sul
Tentando encontrar a felicidade…

Mas cortando o Atlântico Oceano
Regressou ao cantinho lusitano
Por lusa ser a palavra Saudade…

22 janeiro, 2009

Memórias do Alentejo


Um certo dia que por lá passei
Podia ter aberto os maxilares
E de uma vez
Engolido
Aquele oceano de feno, palha e trigo,
Só para levar o sabor do Alentejo na boca.
Mas não o fiz e não me arrependo.
Limitei-me a observar
E com o olhar
As suas cores fui comendo.
Hoje em dia,
Para me lembrar,
Enterro as mãos na memória
E lambo os dedos…

19 janeiro, 2009

5 Possíveis Teorias do Cristianismo


(i) Nasceu. Morreu. Pelo meio houve uma cruz.
(ii) Nasceu? Morreu. Pelo meio houve uma cruz.
(iii) Nasceu. Morreu? Pelo meio houve uma cruz.
(iv) Nasceu? Morreu? Pelo meio houve uma cruz.
(v) Nasceu. Morreu. Pelo meio houve uma cruz?

La-bi-rin-to


La-bi-rin-to:
Quatro sílabas que per-
corro, des-
canso,
Me perco
E sou só eu
Quando eu a mim
Me minto...

15 janeiro, 2009

Sansão e Dalila


Enquanto ele dormia, a traidora
Castrou sua trança pela calada
Com uma velha adaga enferrujada
E espalhou-a pela cúmplice aurora.

Ao acordar, sentindo-se impotente,
Tentou juntar todas as suas forças
P'ra afastar as colunares e grossas
Coxas da amante leoa fremente.

Mas a lâmina foi-lhe ao coração,
Nem sangue tem nas veias, é mercúrio
Morno que rasga o corpo de Sansão.

Mas Dalila, a de cabelo purpúreo,
Ri-se ante o inútil esforço vão
Do corpo quebrado do amante espúrio.

13 janeiro, 2009

O Riacho


Claríssimo o riacho despeja cochichos
Em consonância com o sussurro dos bichos
Que bebido a vida
Têm nas suas águas desde tempos idos
No linguarejar corrente da cristalina
Viagem dos sentidos.

10 janeiro, 2009

S/título


Cai-lhe o céu na pele candial
Como se os deuses tentassem tocá-la,
Perfeita na perfídia virginal,
Sua silhueta por si só fala.

Vista do alto, é rainha na terra,
Cabelo carmesim, pele marmórea,
A lascívia que o seu olhar encerra
Neva uma linguagem incorpórea.

Fala aos corações de deuses e homens,
Sedu-los da sua corte gelada,
Deixa-os entrar e mantém-nos reféns
Numa cama de camélias deitada.

08 janeiro, 2009

S/título


O violoncelar lânguido da tua voz
Embala a tepidez do amor
Que nos une em promessas de eternidade.
Mas é a união animal que te quero
Num momento de desembaraço
E de vontade.

S/título


Um cristalino rumorejar de lágrimas secadas ao vento
Deixam no rosto celeste rasto gravado
Como se rugas tivessem sido esculpidas no céu
Pelas mãos frágeis e fracas de uma criança sem idade
E pela sua ingénua e enorme ânsia de desafio à gravidade
Apenas com um papagaio de papel que o avô lhe construiu.
Mas neste mundo…
Onde as crianças?
Onde os avós?
Onde os papagaios?
Onde os sonhos?
Tudo ruiu?