22 dezembro, 2011

Poema de Natal


Neva lá fora.
Quer dizer... não neva!
Nem sequer chove...
Aqui nunca neva - às vezes chove.
Mas para termos um bom natal tem que nevar
Como nos filmes do cinema americano da época.

(Vamos lá então recomeçar:)

Neva lá fora.
Contemplo a branquidão
E a branquidade do nevão
Através da minha janela.
Através dela,
Vejo a multidão
Passeando na rua – nos sacos presentes, nas caras sorrisos.
A cidade está bonita e singela,
A Câmara Municipal não olhou a gastos com a iluminação.
É um quadro verdadeiramente digno de aguarela!

E nas montras, os comerciantes dispõem e expõem os últimos modelos da moda
(Antes era tudo importado de Paris e Milão
Mas hoje em dia há já roupa portuguesa de muito boa qualidade)
E aos pés dos manequins nunca falta um presépiozinho!
Afinal, o Menino Jesus nunca sai de moda, não é verdade?

E muitos carros passam na rua e passam devagar
E os seus motores parecem relinchar
Como cavalos de épocas distantes e distintas
Em que toda a gente toda a gente conhecia
E toda a gente toda a gente cumprimentava com alegria
E toda a gente por tu tratava toda a gente…
Uma época deveras distante e distinta transposta para o presente.

E até as estrelas parecem conspirar
Se acendendo e se apagando
Ao ritmo do “ho! ho! ho!” que o Pai Natal vai gritando
Ao percorrer os céus com as suas renas capazes de voar.
Não falo metaforicamente
Nem estou a reinar,
Vejo-os claramente,
Tão claro e tão certo
Como estar aqui
O fogo na lareira desperto
E eu, à janela, a ver nevar…
Lá vai o trenó guiado pelo Rudolfo Nariz à Benfica…

Nisto, sou interrompido por uma voz estridente,
Na rua, dissonante do ambiente geral:
“Joãozinho, não largue a mão à sua irmã Frederica,
Olhe que o Pai Natal não traz prendas aos meninos que se portam mal!”

São quase horas de todos irem, cristãos ou não, para o santo lar,
Para com a santa família santamente cear
(Coitado do bacalhau que nunca disse ser cristão mas também nunca disse que não o
era).

O mundo está em harmonia.
O próprio cimento cinzento da cidade irradia
A luz e o encanto próprios deste dia…

E como hoje é a noite em que o Menino nasceu
Proponho um pacto entre o mundo e eu:

Deixemos certas coisas para os noticiários de Janeiro,
Para ocupar o tempo, até ser tempo de Carnaval em Fevereiro;
Não falemos do Darfur, da Chechénia ou do Cosovo;
Esta é uma quadra feliz, por isso…
Votos sinceros de um Feliz Natal e de um Próspero Ano Novo!

21 dezembro, 2011

S/título


Projectista e construtor,
Engenhei-me a mim mesmo
No terreno baldio onde fui plantado.
Paúl e lavradio,
Cunhei duas mil faces na moeda que sou
E vendi-me
Numa feira de versos sem valor.

20 dezembro, 2011

30 Abril 2009


As lácteas paredes empapam o silêncio nervoso que bate os dentes debaixo da ponta roída das unhas gastas pelo tempo - o tenebroso tempo presente e futuro. Todos os dias, o céu parturiente nos dá à luz o sol mas nós, como diria Pessoa, todos carregamos ao colo um filho morto. E há decisões que apenas trincamos uma vez na vida. Aqui, neste lugar onde o tempo abre as suas mandíbulas e engole as palpitações do sangue, vejo desfilar bebés ainda por nascer rumo à sua sepultura, viventes de um tempo que há-de não vir. Entretanto, no outro lado da janela, a avenida desfila tanto pessoas como automóveis, inconscientes de estarem a passar ao lado do Limbo.

As lágrimas do poeta


Presciente, chora o poeta
no presente as lágrimas
do tumultuoso porvir;
ao olhar os caídos, vendo
senão os que hão-de cair,
clama: abençoado seja
quem desconhece
os males que o enfermam
e as dores de que padece...

11 dezembro, 2011

Paisagem: uma lareira e duas chávenas de café quente


Contemplo o teu rosto no desfile sossegado dos dias:

Memórias revivem nas tuas palavras

E colorem o cinzento do inverno e das mantas.

O restolho da crepitação da tua voz e do discurso da lareira

Acesa, a frialdade da pele, as chávenas de café quente

Fumegando silêncios sugeridos – o tempo, sempre o tempo.

Vejo, nos intervalos entre as tuas sílabas, o carnaval de memórias

Esvoaçando como balões coloridos pelo céu da tua boca sem dentes:

Murchos tanto os balões como a boca.

Conta-me, conta-me histórias, conta-me os cadáveres dos teus dias

E eu contá-los-ei à medida que os ouço, como carneiros ou como estrelas.

Atira mais uma acha para o lume e eu ouvirei o que tens para dizer –

Atira mais uma acha para o lume e eu amarei os teus silêncios.

05 dezembro, 2011

S/título


Guardo os ecos do tempo e de mim nas concavidades
das folhas como barcos de papel e nas linhas calejadas
das folhas e das palmas das mãos, no cansaço amarelo dos olhos
e nas rugas de um rosto rimado e permito que alguns
murmúrios se escapem como rugidos de tigres encarcerados
não!, como palavras vagas de um mar de poesia: sou caronte
levando os meus poemas para o outro lado de mim
e não necessariamente para o reino dos mortos:
na verdade desenterro-os da necrópole que sou como raízes
doentes de flores belas que sou e queimo-os no meio do rio que sou,
em hecatombe, no silêncio crescente que se instala entre
as sílabas líquidas e lívidas, no não-dito, em homenagem à vida.

01 dezembro, 2011

/matemàtiquerótica/


Imagino um quadrado onde vejo

A perfeição de um círculo

E projecto nas suas arestas superiores

A curvatura das tuas ancas.

Sinto os teus joelhos ossudos

Ao passar ao de leve com os dedos carnudos

Pelos ângulos inferiores do equilátero arquitectado

Pelo meu olhar.

Os dedos além da imaginação

Sentem a curva plena do círculo real:

Pouso os olhos no teu ventre e nos teus olhos redondos.