31 janeiro, 2013

S/título

Como tentáculos vivos,
coroa-me um cacho
de cabeças de serpentes
esmagando uvas negras
e maduras
entre os dentes;
cabelos que mudam a pele
como répteis frios
e esquivos.

Sangue doce
escorrendo pelo corpo do verão
queimando os olhos
do coração
de reis altos e altivos.

As nossas peles brancas
e transparentes
colam-se uma à outra
como serpentes
enroladas na sintaxe do silêncio.

27 janeiro, 2013

O Fado das Viúvas


Defronte da Rua do Arco,
para quem estiver a pé,
vi eu deslizar um barco
p’ra Ria vindo da Sé!

Não seria grande o espanto
se o barco fosse real
mas era feito de pranto
e de lágrimas de sal!

Levavam-no as mulheres
aos ombros enviuvados,
sem capitã nem alferes,
mandantes ou subordinados.

Na água a embarcação
foi empurrada pelo choro
tendo por tripulação
os gritos delas em coro.

Deram o adeus aos maridos
e p’ra casa, sem queixume,
foram lembrar tempos idos,
e pôr o jantar ao lume.

15 janeiro, 2013

S/título

Na penumbra dançantes
se revelam os corpos suados
ébrios de incenso
e de pulsões animais.

Após que o sol se ponha,
desceremos a avenida do amor
e ao mar atiraremos nossos
gemidos
para que se confundam com o suspiro
ritmado
da ondulação

e a fosforescência invisível dos fluidos.

14 janeiro, 2013

Mulher-Gato

Um gato selvagem
numa noite de luar
dança no teu corpo...




O Cheiro das Rosas

Hei-de queimar rosas,
meu amor.

Depois de arrancar meus olhos como
cortasse os espinhos de uma roseira
brava, hei-de queimar as rosas nas
órbitas vazias  como pequenos faróis
que te mostrem por onde ir.

Cleópatra
abeberou as velas violetas
da sua barcaça dourada em água de
rosas para embriagar de amores
os ventos gentis; eu hei-de soprar
a chama
das tuas velas e fazer-te ir. Sim, ir 

ir simplesmente  lá para onde
o dilúculo envergonhado atira as ondas
dos teus cabelos contra a orla do
meu corpo, lá onde as adagas se nos
espetam na carne e as serpentes nos
percorrem a pele e os teus lábios nus
têm o sabor da cicuta, lá onde a brisa tem
o cheiro das rosas, meu amor.

12 janeiro, 2013

O Jardim dos Pavões


Lá no jardim dos pavões
cantam, de rosto encoberto,
mulheres de cem nações,
umas longe, outras mais perto.

A chuva enche-lhes a boca
ao sorrirem para o céu
e na sua dança louca
vêem voar o seu véu.

Lá no jardim dos pavões
há mulheres nuas, belas,
dançando com os trovões
na cadência das procelas.

Quando a tempestade finda
têm os corpos lavados
e na sua pele linda
são os pavões tatuados.

11 janeiro, 2013

O Cais dos Sonhos


Esta solidão que me afaga
é como os dedos de uma amante que me penteassem
o cabelo a meio da noite.
Ou o vento frio que me assobia aos ouvidos
com promessas de terras quentes no além-longe.

Sentado na berma da estrada vejo o cais
de onde já partiram todos os meus desejos.
Um dia, serei eu a comprar a passagem
Nos guichets que vendem bilhetes mas também sonhos.

“Bom dia, o que vai desejar?”
“Um bilhete e um sonho, menina”.
“Com certeza. E o destino?”
“Um bilhete para fora daqui e um sonho para dentro de mim”.

É que estes óculos, que uso desde há vários anos,
hoje já só me servem para ler os mesmos livros 
que tenho lido nesses mesmíssimos anos;
quando quero olhar para mim mesmo as lentes desfocam a visão
e tenho que usar a minha mente 
para imaginar-me através dos sonhos.

É que dentro de mim tenho um oceano grande  grande o suficiente
para nele nadarem nuas e livres todas as criaturas do mundo:
do mundo real e do mundo que eu possa imaginar também.
E quando olho para dentro de mim 
quero ver tudo com a clarividência dos peixes.

“Os peixes têm óptima visão, nunca se soube de nenhum que usasse óculos!”
(disse eu e ela riu-se)

A meio da noite o cais está deserto, não há barcos
A partir da minha terra-natal. 
Amanhã será outro dia e outras viagens serão realizadas, 
outros barcos chegarão ao cais e dele
sairão depois que os passageiros subam,
tudo segundo um horário pré-estipulado.

Se eu fosse uma gaivota e pudesse voar até à outra margem
será que compraria um bilhete para o barco?
Sim, provavelmente sim.
“Porquê?”
Porque há qualquer coisa de simbólico
no cais que acena, aos barcos que partem, com os seus dedos de água
que em ondas me afagam os pés a meio do dia.

Há qualquer coisa de mítico no capitão do barco que leva às costas
mil passageiros, somados os quinhentos que subiram ao barco
e as respectivas almas que os acompanham.

Havendo um naufrágio, e supondo que todos os cadáveres fossem
recuperados, dir-se-ia
“os quinhentos passageiros foram resgatados,
já sem vida,
às águas frias da morte”.
Mas nenhum noticiário falaria nos quinhentos passageiros não mortos
mas por nascer que não seriam recuperados.

É que há um passageiro em cada pessoa que embarca na origem mas há dois
na pessoa que desembarca no destino – pois tem a alma prenhe de esperança.

Nisto pensando, imaginei o último barco do dia
desancorando rumo à linha do horizonte.
“E se o barco não desaparecesse abaixo do horizonte mas acima dele?”,
conjecturei.
“E se o barco em vez de seguir navegando pelo mar subisse navegando,
como quem navega por um rio acima, através do céu?

“Amanhã é outro dia”, pensei.
E amanhã novamente aqui estarei.

10 janeiro, 2013

S/título

Morto vejo, ao longe, a bruma,
arauta da escuridão –
deixa pegadas de espuma
sobre a negra vastidão.

E o nevoeiro, emissário
dos corcéis de belo porte,
avança no solitário
ermo onde reina a Morte.

Ei-lo: Cristo coroado
ou talvez Dom Sebastião
dando à Morte o resultado
da justa retribuição!

Contos de Desencantar: Cinderela

Vós conheceis a donzela
de quem eu vos vou falar,
ouviram o nome dela
em histórias de encantar.

Apaixonou-se um dia
por um belo rapagão,
membro da aristocracia,
a quem deu o coração.

Mas o Príncipe Encantado
tinha tanto de formoso
como tinha de malvado...

Mandou fazer cabidela
nessa noite, só por gozo,
com o sangue da Cinderela!

09 janeiro, 2013

S/título


Aqui neste sítio das tardes tenras, lentas, monótonas
e vestidas de veludo, de onde espreito o sol que,
langorosa e entediantemente, se afunda no mar
como se para dentro de mim, arquitecto com os olhos
barcos feitos de sonhos e de velas sopradas
pelo ar quente dos pulmões que, sendo parte
do meu corpo, não são realmente parte de mim.
Contemplando ao longe e ali tão perto a réstea
de luz que se apaga no horizonte e que se confunde
com os rastos espumosos por onde passei meu olhar,
invento no papel frotas novas de velhos navios cujos porões
vão cheios de pensamentos altos e sublimes, do cimo
dos quais se pode descobrir esta tarde onde
eu de mim mesmo me desaguo no acenar aos cardumes
de estrelas que nadam pelo céu já negro do mar…

07 janeiro, 2013

Retrato: a tua voz rouca

Teus lábios tristes fazem do cansaço
poema de apologia do amor
quando, ao derramares teu olhar baço
sobre o vazio de mim, renasce a dor.

A dor de viver que trago comigo
presa no coração que se partiu,
como as cordas de um violino antigo
cujo som perdido não mais se ouviu.

Hoje, mandarei a orquestra calar
todos os seus perfeitos instrumentos
e tua voz rouca há-de me levar
numa viagem de doces tormentos.

06 janeiro, 2013

Perséfone


Num movimento singular de ancas, ela montou-se
nas palavras e apertou o corpo musculado
do poema entre as coxas, sentindo
o pêlo suave e suado da besta
a roçar-se-lhe
pelo sexo
molhado,
jovem,
quente...
Nos dedos frios
sentiu a crina da sua própria
cabeleira - e, puxando-a, arrancou
à sua face a máscara do espelho que resfolegava
a linguagem ctónica da morte amordaçada por rédeas douradas...

Abre os braços e agita os ombros como se quisesses voar,
como os teus pés fossem raízes crescidas, nos céus do amanhã,
das nuvens negras de uma noite de procela - minha Perséfone,
abre a boca para o céu e engole as sementes da minha romã.

05 janeiro, 2013

S/título


A tua boca cantou-me,
em sussurros de fogo,
palavras enigmáticas que eu não entendi.

Mas a minha pele compreendeu
o chamamento ancestral da tua língua
que cortava, com verbos e facas,
o silêncio dos nossos olhos plácidos 
e traduziu para que também a carne
pudesse entender.

Empurrei-me para dentro da tua boca
e bebi-te o hálito, embriagado
pela consistência licorosa da saliva crua.

Ainda te trago o sabor da carne 
na ponta dos dedos.

03 janeiro, 2013

S/título

P'la linha do comboio
ando rente ao luar,
mirando as estrelas
com quem possa chegar.

Mas enquanto não chega
quem um dia partiu,
assobio ao comboio
na linguagem do rio.

Suas águas não param,
correm eternamente,
e o comboio não chega
à estação do oriente.

Ao longe, uma igreja
plantada no vazio;
e eu aceno ao comboio
na linguagem do rio.

As luzes de néon
por cima da capela
iluminam o rosto
da beata à janela.