Esta solidão que me afaga
é como os dedos de uma amante que me penteassem
o cabelo a meio da noite.
Ou o vento frio que me assobia aos ouvidos
com promessas de terras quentes no além-longe.
Sentado na berma da estrada vejo o cais
de onde já partiram todos os meus desejos.
Um dia, serei eu a comprar a passagem
Nos guichets que
vendem bilhetes mas também sonhos.
“Bom dia, o que vai desejar?”
“Um bilhete e um sonho, menina”.
“Com certeza. E o destino?”
“Um bilhete para fora daqui e um sonho para dentro de mim”.
É que estes óculos, que uso desde há vários anos,
hoje já só me servem para ler os mesmos livros
que tenho lido nesses
mesmíssimos anos;
quando quero olhar para mim mesmo as lentes desfocam a visão
e tenho que usar a minha mente
para imaginar-me através dos
sonhos.
É que dentro de mim tenho um oceano grande – grande o
suficiente
para nele nadarem nuas e livres todas as criaturas do
mundo:
do mundo real e do mundo que eu possa imaginar também.
E quando olho para dentro de mim
quero ver tudo com a clarividência
dos peixes.
“Os peixes têm óptima visão, nunca se soube de nenhum que
usasse óculos!”
(disse eu e ela riu-se)
A meio da noite o cais está deserto, não há barcos
A partir da minha terra-natal.
Amanhã será outro dia e
outras viagens serão realizadas,
outros barcos chegarão ao cais e
dele
sairão depois que os passageiros subam,
tudo segundo um horário pré-estipulado.
Se eu fosse uma gaivota e pudesse voar até à outra margem
será que compraria um bilhete para o barco?
Sim, provavelmente sim.
“Porquê?”
Porque há qualquer coisa de simbólico
no cais que acena, aos barcos que partem, com os seus dedos de
água
que em ondas me afagam os pés a meio do dia.
Há qualquer coisa de mítico no capitão do barco que leva às
costas
mil passageiros, somados os quinhentos que subiram ao barco
e as respectivas almas que os acompanham.
Havendo um naufrágio, e supondo que todos os cadáveres
fossem
recuperados, dir-se-ia
“os quinhentos passageiros foram resgatados,
já sem vida,
às águas frias da morte”.
Mas nenhum noticiário falaria nos quinhentos passageiros não
mortos
mas por nascer que não seriam recuperados.
É que há um passageiro em cada pessoa que embarca na origem
mas há dois
na pessoa que desembarca no destino – pois tem a alma prenhe de
esperança.
Nisto pensando, imaginei o último barco do dia
desancorando rumo à linha do horizonte.
“E se o barco não desaparecesse abaixo do horizonte mas
acima dele?”,
conjecturei.
“E se o barco em vez de seguir navegando pelo mar subisse navegando,
como quem navega por um rio acima, através do céu?
“Amanhã é outro dia”, pensei.
E amanhã novamente aqui estarei.