24 fevereiro, 2010

S/título


Discorre o tempo e o tempo
Corre.
Discorro eu enquanto
Corro as pálpebras fenetras da alma.
Pergunto ao tempo
Se tem alma como eu
Não tenho mas
Não lhe ouço a resposta pois o tempo
Discorre e eu
Corro.

19 fevereiro, 2010

S/título


Se pudesse viver só de poesia,
Fá-lo-ia.
Construiria um soneto, parede por parede, sólido na sua [arquitectura métrica
Exacta e elegante. Depois,
Pintá-lo-ia com as cores quentes de um ritmo alexandrino que,
Apenas aparentemente, não caberia dentro dos versos de dez [sílabas.
Ah e depois disso, mobilá-lo-ia com a prosódia própria de uma [alma sem voz
Fazendo-se eco nas sílabas que a madrugada desfila, hora ante [hora, até à hora nascente...
E depois? Depois podia morrer lentamente,
Espreguiçando-me num verso branco de lençóis de linho [lavados...

15 fevereiro, 2010

Vulnerabilidade

Mais uma vez, tive o prazer de ver um poema meu incluído nos passatempos da Inês Ramos, responsável pelo blog de e sobre poesia Porosidade Etérea. Aqui no Amendual reedito o Vulnerabilidade ao mesmo tempo que aconselho vivamente os leitores a darem um pulo ao blog da Inês para lerem os muitos textos que lhe chegaram às mãos sob a égide temática da poesia erótica (o meu é o penúltimo dos poemas publicados). Boas leituras.


De olhos vendados,
Vulnerável,
Não por força alheia e bruta,
Mas por sua vontade
Fechados,
Ela se prostra
Sobre a mesa que às vezes é cama,
Onde ele a almoça quando ela o chama...
Sem palavras (quem realmente
Delas precisa?), ela prende-se, sem correntes,
Às mãos rudes que a possuirão
E ao corpo estranho que a cobrirá
De peso e de prazer.
Sem palavras, sempre sem palavras,
A lânguida morosidade da escuridão
Cairá
Sobre a tarde proibida em jorros de luz vespertina a amadurecer
Na língua do amante que ela nunca verá...

12 fevereiro, 2010

O Desejo

Ela apaixonou-se pelos olhos dele, ele pelos lábios dela. Jantavam e passeavam de mãos entrelaçadas, ela sempre contemplando-lhe a inocência do olhar, ele sempre apascentando-se nos movimentoso sibaritas da boca dela. Amavam-se noite adentro, até os corpos sucumbirem ao cansaço. Mas, à medida que as madrugadas avançavam, ele mantinha-se acordado e insatisfeito. Observava-a na cama, embalada pela penumbra interrompida pela iluminação da rua, as persianas desenhadas a sombra e luz no voluptuoso corpo adormecido. Um dia pegou num bâton vermelho e, levemente, para que ela não acordasse, pintou-lhe os lábios. Depois, agitou uma lata de chantilly e cobriu-os de branco, de doce. Por fim, comeu-os, mordiscando-os, sempre levemente, em pequenas dentadas, como fossem morangos.

11 fevereiro, 2010

S/título


Recém-descido da montanha, o sonho
Pousou-te nos lábios ainda molhados
Do orvalho, ligeiramente rosados à luz
Da estrela da manhã, e dançou,
Durante séculos, ao sabor da tua língua,
Ainda quente, ainda húmida, ainda não esquecida.
Mas quando te beijei, dois mil anos depois, senti
O gosto messiânico do teu sangue, misturado
Com o odor a podre exalado pela tua boca.
Oh, néscio, terás tu abraçado a coroa de espinhos
Entre os dentes? Porque escolhes tu partir o pão
Seco e reparti-lo entre as doze tribos quando
Nos podes beber a tenra carne a todos como se um só?

S/título


Enrodilha-se,
Como um fio de lã,
Um novelo de lã,
Em volta do dedo
Picado
O rasto do sangue
Não lavado pelas chuvas
De um inverno ainda não sonhado.
Abraçadas as pétalas da rosa
(da roseira?)
Com a palma da mão aberta
(fechada?)
Sobram apenas os espinhos
Para que o doce cheiro dos teus olhos
E dos teus lábios
Não desfaleça ao viajar,
Oblíquo,
Para Ocidente...

05 fevereiro, 2010

Acorda, Criança


Acorda, criança!
O mundo de cristal em que te escondes
Está prestes a ser quebrado.
As frágeis muralhas sonhadas pelos teus dedos
E construídas pelos teus olhos
Em breve cairão por terra
E os segredos que em teu peito encerras
Serão abandonados.
O conforto do teu leito será trocado
Por um novo mundo
Um novo e admirável mundo
Onde os cordeirinhos que contas para adormecer
Dançarão com os lobos dos teus pesadelos…
São lascivos e perigosos os desafios
E é com um sorriso que contas recebê-los?
Acorda, criança!
O mundo está à tua porta
Esperando pela tua indecisão.
Dorme, criança…
Deixa-te embalar pelos sonhos que a nova idade
Te uivará aos ouvidos…