Todas as portas do país se fecharam naquele dia
- e todas as bocas, só os olhos se mantiveram muito abertos,
em assombro, espreitando pelos postigos das janelas.
As palavras foram atiradas para o fundo de um poço,
talvez a toca do coelho por onde Alice outrora caíra,
e ninguém ousou libertar um grito de revolta.
Os livros começaram por sangrar lentamente até que
perderam toda a tinta, e as páginas ficaram desertas,
tão desertas como as ruas daquele país naquele dia.
Mais tarde, lembrei-me (pouco mais velho seria que a própria Alice)
de espreitar para dentro de um livro e ver como seria.
Então escrevi num papel branco as letras l i v r o
e demoradamente analisei o conjunto formado.
Concluí que só poderia espreitar através do buraquinho
formado pela última letra - nenhuma outra se apresentava
tão consentânea com este meu ambicioso mas pueril projecto.
Aproximei, devagar, o meu rosto ao papel, fechei um olho,
e encostei o outro à última letra. O que vi foi tão marcante
que, a partir desse dia, todas as noites descia, sorrateiramente,
até ao fundo do poço e resgatava, um por um, todos os livros
quantos consegui. E, como que por magia, perante os meus olhos
e as minhas madrugadas, todas as letras ressuscitaram...
Hoje, o meu país já tem livros outra vez,
mas não digam a ninguém: é segredo...