23 novembro, 2008

A Bala


A bala sentiu o passar das horas dentro da carabina com a indiferença natural de um pedaço de metal. A espera e o lento desenrolar de uma manhã que pareceria, a alguém que não fosse de metal, nunca mais ter fim, o constante espreitar por detrás do postigo da janela de um sexto andar de uma enorme avenida em Dallas, o simples facto de estar ali, parada, sem cortar o ar, sem estar junto com as suas semelhantes, ali, no frio vazio da carabina, o corpo de metal frio abraçado pelo frio toque do metal da arma, nada a fazia tremer, suar, hesitar. Nada. A sua rota estava traçada, nada havia a rever. Rota, não: destino. O sol do meio-dia caía a pique sobre a janela virada para sul mas nem assim a bala desviava o seu olhar, mesmo que o sol lhe queimasse os olhos. Ela sabia para onde se dirigir, até de olhos fechados. E nada de suor. Nada de remorso. Meio-dia e vinte e nove. O cortejo atravessa, lentamente, a avenida. O carro presidencial a todos acena com a sua capa de tinta preta imaculada, enquanto o azul, branco e vermelho das bandeiras ondula apenas ao sabor da velocidade do veículo , uma vez que Dallas hoje não está na rota do vento – não é de rotas que se trata, é de destino. Um vulto levanta-se e agradece o amor do povo, enquanto sorri. De repente, a frialdade que envolvia a bala transforma-se num inferno quente que a leva pelo comprido cano da carabina de origem italiana, pela janela fora, do sexto andar na direcção da avenida, sobrevoando a cabeça do povo, sobrevoando o asfalto da estrada, sobrevoando o sonho. Meio-dia e meia. Depois de ter cortado o ar empolgante e patriótico que enchia os pulmões da cidade, a bala sentiu um forte impacto. Segundos depois, recobrou a consciência e notou que estava despedaçada sobre o cabedal outrora branco do banco de trás do veículo presidencial. Despedaçada e envolta em sangue. O cabedal também se encontrava cheia de sangue. E tecido cerebral. A última coisa que viu, antes de seguir o seu destino (a morte) foi o olhar embebido de um sorriso terno do homem que tinha acabado de atravessar. O que já não ouviu foram os gritos desesperados da primeira-dama, ritmados pela euforia de milhares de gargantas que gritavam pelo nome do seu marido, ignorantes de que John já não se encontrava entre eles.