17 novembro, 2008

Noite de Cristal


Herschel dormia quando ouviu o riso maquiavélico do vidro da montra da loja do seu pai, sobre a qual viviam os dois, ele órfão, o pai viúvo, estilhaçando-se em trinta mil pedaços. De pronto, saltou da cama e correu, sem sentir a frialdade do chão sob os seus pés descalços, para a janela do quarto de onde, privilégio de filho único, podia vislumbrar uma considerável parte de Berlim. Ao olhar, na linha incadescente de um horizonte que se insinuava nitidamente contra a noite escura, a sinagoga onde o seu pai o levava desde que lhe ensinara o significado de se ser herdeiro de David, também o coração de Herschel se partiu em seis milhões de pedaços. Mais do que Berlim, ele viu o perfil da face da sua própria nação sem terra afundando-se no lodo fumegante do solo alemão. Nesse momento, enquanto ouvia vozes de semblante ariano ribombar pela madrugada, Herschel soube no seu coração que teriam de partir. Olhou uma última vez para a sinagoga e viu-a sucumbir ao abraço quente de uma coluna de fumo que escondia o beijo abrasador de uma língua de fogo. Berlim não era mais segura e restava-lhe apenas, na inocência dos seus nove anos, levar o pai pela mão, os pés desnudos pisando flores de cristal semeadas na estrada, em busca de Nuremberga.